Quinta-feira, 20 de Setembro de 2007

A Ida a Fátima

    

     — Mas quem é que vai a Fátima? — perguntou o meu avô, que entretanto descera do quarto, para mais uma das suas habituais incursões pela cozinha à procura de torresmos que a minha mãe, sob a ameaça de ser deserdada, era obrigada a fazer todos os dias.
     — Aí a sua querida filha é que falou nisso!… — respondeu o meu pai, apontando com o nariz, ao mesmo tempo que encolhia os ombros, um gesto que, se ainda dúvidas restassem, o desligava em definitivo daquela promessa sem pés nem cabeça que a minha mãe acabara de fazer e cuja justificação fazia assentar em pressupostos completamente infundados. O que era grave.
     Mas eu explico para que se perceba:
     A conselho do doutor Duarte, o nosso médico nos Arcos, o meu pai levou-me a Coimbra para que o doutor Piteira, um especialista de primeira água, tentasse determinar as causas da minha excitação permanente. Só que, quando nos preparávamos para entrar no consultório, soubemos que o doutor Piteira, coitado, se tinha apagado dois dias antes com uma cirrose no fígado.
     Para que não perdêssemos a viagem, por indicação do senhor Fragoso, o porteiro do prédio do falecido, acabei por ser visto pela doutora Leonilde, uma sujeita descomunalmente gorda, a quem o meu pai, numa análise controversa é certo, mas de tal forma vanguardista que me deixou perfeitamente abananado, atribuía a sua obesidade aos gases provocados pela concentração excessiva de ácido clorídrico no estômago, gerado, por seu turno, pelas muitas leguminosas que, possivelmente por via das dietas, a senhora devia andar a ingerir.
     Ora como a médica não me receitou porcaria nenhuma, limitando-se a recomendar que não me dessem café, chá ou chocolates, ou outras coisas do género que me pudessem excitar, a minha mãe, num daqueles raciocínios lineares mas indiscutivelmente perspicazes em que era perita, partiu do lógico princípio de que, se o meu pai e eu fizéramos tão longa como dispendiosa viagem a Coimbra e se não me tinham receitado nada, nem sequer aquela história horrorosa do óleo de fígado de bacalhau, era sinal evidente que a coisa era séria e o mal de morte, devendo eu estar mesmo prestes a entregar a alma ao Criador.
     Só restaria, portanto, a uma mãe extremosa e devota convicta como ela — devota, pelo menos até ter cortado relações com o padre Antero, o chupista, como me lembro dela lhe ter chamado —, apegar-se com um santo para tentar reverter a situação. Deixem-me que pergunte agora: haveria por aquela altura, em que a televisão nem sequer tinha chegado, o transistor sido inventado, o consumo da manteiga democratizado, a guerra colonial começado, investimento mais seguro em matéria de milagres que a Nossa Senhora de Fátima?
     — E vais como? — perguntou o meu avô, como que adivinhando o que estaria ainda para vir.
     — Eu estava a pensar ir a pé…
     — A pé?!… — indignou-se ele, deixando vir ao de cima todo o seu pragmatismo, qualidade que, por tão rara, lhe valia o reconhecimento e a admiração de toda a vizinhança. — Mas queres ir a pé quando o carro de aluguer é a maneira mais rápida e segura de chegar a todo o lado?
     — Mas era só de Leiria a Fátima, pai, por causa do miúdo. — achou por bem justificar-se a minha mãe.
     — Ai o miúdo também vai ?! — espantou-se o meu avô.
     — Também, que a promessa é por causa dele — respondeu ela. — Mas vai de triciclo, que é para não se cansar.
     Não sei se alguma vez contei aqui que o meu avô tinha sido marinheiro, daqueles a sério, de água salgada. Se não contei, também de certeza absoluta que não lhes disse que o navio onde ele andava foi a pique, nos mares dos Açores, durante a Primeira Guerra Mundial, perfeitamente em frangalhos, torpedeado por um submarino alemão.
     E o facto de, antes de ir ao fundo, segundo aquilo que o meu pai me contou, ter ainda conseguido — e não me perguntem como, pois essas coisas costumam ser sempre segredo militar — dar umas valentes lambadas nos gajos do submarino, valeu-lhe, para além da cruz de guerra e umas duas outras medalhas, o respeito e a admiração de toda a gente da Valeta.
     E eram todos esses factos, aliados à parafernália de atributos que, aos poucos, vinha descobrindo no meu avô, que fazia com que vivesse fascinado pela sua figura. Colocava-o, inclusivamente, no mesmo pedestal que todos os meus outros heróis favoritos, como o Super-Homem, o Mandrake, o Roy Rogers, o Príncipe Valente, o Mascarilha, ou até mesmo o Zé Sopapo.
      E é lembrando-me disso, que com muita mágoa refiro que sempre achei uma perfeita injustiça, uma clamorosa indelicadeza, uma refinada arbitrariedade, ainda ninguém se ter lembrado de fazer um livro em quadradinhos com ele a dar tareia nos boches, ou no próprio polícia Amorim que até esse, de vez em quando, também levava.
     —A propósito… — observou o meu avô, com a tampa da terrina dos torresmos suspensa no ar, como se lhe tivesse aflorado qualquer coisa repentinamente à ideia — já sabem quem é que vai financiar essa tal promessa a Fátima?
     Vi a minha mãe, de pé, a olhar comprometida para o meu pai. Percebi claramente o seu encolher os ombros, o meter das mãos impotentes nos bolsos do avental, deixando que o silêncio respondesse por ela.
     — Deixem-me adivinhar… — ironizou ele, pegando numa mão cheia de torresmos que encaminhou entretanto para a boca — aqui o marinheiro, não é verdade?
     — Ó pai, ninguém disse isso!…
     — Como se fosse «freciso»! — e os perdigotos dos torresmos, devido ao crescente agastamento, voavam-lhe disparados pela boca fora.
     E o meu avô olhando-nos aos três com uma expressão desorbitada, pegou na terrina e saiu célere a resmungar impropérios em direcção ao quintal.
     — Posso começar a aprender a andar de triciclo lá fora? — perguntei eu, na melhor das boas-fés, a ver se amenizava o ambiente.
     A minha mãe, ainda não refeita da má disposição que a argumentação do meu avô lhe provocara, deitou-me um olhar fulminante. O meu pai, contemporizador, inclinou-se para mim na cadeira e esfregou-me com a mão a cabeça.
     Ia eu, repimpado, a sair a porta quando vi o meu avô retroceder. Passou por mim como se não me tivesse visto, deu, sem querer, uma cacetada ligeira com a terrina no umbral da porta, e disse, virado para a minha mãe:
     — E se fôssemos todos de carro pôr uma vela à Senhora do Sameiro, a Braga, que é mais perto? Assim como assim — acrescentou ele — como quem paga sou eu…
     Ainda vi a minha mãe a abrir a boca, a tentar contra-argumentar, mas sem conseguir articular palavra, tornou a fechá-la.
     — Parece-me bem! — exclamou o meu pai, abanando com a cabeça. — Muito bem mesmo!
     — E já não preciso ir de triciclo? — indaguei eu.
      — E tu sabes lá andar de triciclo, rapaz? — perguntou o meu avô, baixando-se à minha altura, afagando-me o cabelo e piscando-me o olho, sorridente.
publicado por jdc às 09:47
link | favorito
Comentar:

Mais

Comentar via SAPO Blogs

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.

.mais sobre mim


. ver perfil

. seguir perfil

. 1 seguidor

.pesquisar

.Outubro 2007

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

.Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

.posts recentes

. Myanmar Livre

. As Palavras Escapam-se-me...

. O Suaíli

. Assim Não Quero Ser!

. A Poesia do Silêncio

. El Tigre

. Kopi Luwak

. Diálogos à solta (4)

. É agora, Zé!

. O Que é o TENORI-ON

.arquivos

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

.tags

. todas as tags

.links

blogs SAPO

.subscrever feeds

Em destaque no SAPO Blogs
pub