Já há uns tempos que me sentia a perder a agilidade, lento de movimentos, pesado mesmo. Quando descobri que era do cabelo, espreitei a minha agenda e marquei a ida ao barbeiro para sábado 25. Hoje.
Pedi para ser o senhor Armando, mas estava para os Algarves. Saiu-me uma moldava.
No princípio achei-lhe a cara meio esquisita, mas quando me perguntou «como queria», pelo sotaque associei-lhe a cara à pronúncia e vi que era de Leste.
— Curto — disse-lhe eu. — A espetar!
— Como? — Perguntou, franzindo a testa.
— Não ligue! — Atirei-lhe, como que a desculpar-me pela precisão esquisita. — Curto, só!
— Máquina ou tesoura?
Agradava-me a objectividade do seu laconismo.
— Máquina!
— Pente 3 ou 4?
A pergunta, profissional, objectiva, devia tê-la sempre engatilhada para testar o grau de exigência dos clientes. Fiz de conta que não ouvi e ela, que não se desmanchou, fez também de conta que lhe tinha respondido, pois apressou-se a encaixar na máquina o pente de dentes mais largos. Seria o 4? Perguntei-lhe. É sempre bom saberem-se estas coisas mais elementares para em próximas oportunidades não sermos apanhados em contra-pé. Confirmou que sim.
Desbastou o que quis com a máquina, imaginando-a pelos gestos, pelo desembaraço dos dedos a ceifar searas férteis. Cortou atrás, dos lados, por cima. A sua mobilidade, a sua presteza, a sua desenvoltura, agora com a tesoura, transmitiam-me confiança.
A tensão inicial que nos retesa o corpo, tão natural quando entregamos a sorte da nossa cabeça nas mãos de um estranho, foi-se esvaindo aos poucos. Relaxei o pescoço, as costas, os braços. A rigidez das nádegas deu lugar a uma flacidez saborosa que se estendeu a todo o corpo.
E nesta moleza, fechei despreocupado os olhos e entreguei-me nas suas mãos.
— Criesce prá friente!
Abri os olhos. Pelo espelho vi-a a apontar para um tufo de cabelos que, desintegrados do conjunto, pareciam ter sido ali espetados, do lado esquerdo, mesmo à entrada do couro cabeludo, e que, apesar dos seus esforços, não conseguia perfilar.
— É da posição em que durmo; sempre para o lado esquerdo. — Tranquilizei-a.
Tornei a fechar os olhos, desta vez preocupado: não devia ter entrado neste tipo de inconfidências. É defeito meu, mesmo. Tinha lá alguma coisa que lhe revelar a posição em que durmo? E se ela dormisse para o mesmo lado? Olhei novamente para o espelho tentando confirmar se ela teria um tufo de cabelo espetado do lado esquerdo. Tinha. Mais pequeno que o meu, mas tinha.
Ela reparou que estava a observá-la e sorriu.
— Eu também. Sempre pró lado izequierdo. — Revelou.
Pôs-me uma toalha à volta do pescoço, rodou a cadeira e começou a lavar-me a cabeça.
Estiquei um pouco mais as pernas, reclinei ainda mais a cabeça para trás e deixei-me estar ali, naquela indolência boa, enquanto que os seus dedos envolviam o champô na água tépida que escorria com abundância por entre os meus cabelos.
Notei uma batida mais rápida no peito, dei um suspiro mais fundo e dos meus lábios senti desprender-se um sorriso. Ah! como era agradável a sensação de se encontrar alguém com o qual se tinha alguma coisa em comum. Quanto mais não fosse, essa coisa tão bonita de ambos dormirmos virados para o lado esquerdo da cama.