Inicialmente prevista para hoje, a publicação de «Ai simplex!» - a última crónica de Eduardo Prado Coelho -, acabou por ser antecipada pelo jornal «Público» para ontem, domingo.
Transcrevo-a agora aqui, como homenagem ao homem, ao escritor e ensaista desaparecido sábado passado.
Ai Simplex!
Há momentos em que nos damos conta de que o Simplex, essa excelente e meritória iniciativa concebida por Maria Manuel Leitão Marques, está a funcionar, mas há outras em que choramos pela sua ausência, na expectativa de que um dia, não demasiado longínquo para a nossa esperança de vida, chegue. Dei-me conta disso ao acompanhar e mesmo participar no processo de legalização em Portugal de alguém que trabalha em minha casa há já algum tempo, e que, pelas suas capacidades profissionais, e sobretudo pelas suas qualidades humanas (como pude comprovar em período recente da minha existência) é pessoa de quem é fácil gostarmos: a brasileira Maria Nágila Bezerra, pessoa de permanente bom humor, que ri mesmo quando conta as mais terríveis tropelias a que possa ter sido sujeita.
Sucede que há algumas semanas atrás começou a não aparecer ou a chegar mais tarde. Não se tratava, como vim a saber, de deambulações existenciais por montes e vales, nem mesmo de acessos místicos, mas antes de razões infelizmente mais prosaicas: ia ao SEF. Rapidamente descobri que se tratava do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. E pude compreender que o modo de funcionamento desta instituição nem sempre teria aquela perfeição que nós desejaríamos para um serviço público em área tão sensível como esta. Comprova-se que, se por vezes encontramos funcionários amáveis e colaborantes, desejosos de nos facilitar a vida, outras há em que nos confrontamos com pessoas stressadas e amarguradas pelo amarelo das paredes e os dramas conjugais para os quais quase nunca contribuímos mas de que pagamos as implacáveis consequências. Para ir ao SEF, a Nágila levantava-se antes de o Sol nascer para se deslocar de Alverca até Lisboa, onde, às portas do SEF, se organizava uma fila imensa de pessoas que esperavam cinco e seis horas para serem atendidas. E quem as atendia? Gente zangada com a vida que parecia ter uma especial volúpia em criar dificuldades: incapazes de explicarem tudo o que as pessoas precisavam de levar, incapazes de perceberem que as pessoas que atendiam tinham certas limitações na compreensão dos mecanismos burocráticos portugueses, descobriam sempre mais papéis que faltavam, o que obrigava a recomeçar tão exaltante peregrinação.
Tenho à minha frente o papel que acabou, ao cabo de porfiados esforços, por lhe ser dado e que, num português em que “há menos” se escreve “à menos”, se intitula “Renovação de Autorização de Permanência Temporária para Trabalho subordinado”, esclarecendo-se, para consolo das nossas almas, que é ao abrigo do art. 217, n.º 1, da Lei 23/207 de 04 de Julho. Que é preciso? Um passaporte válido, um comprovativo das condições de alojamento (contrato ou atestado da Junta de Freguesia), declaração do IRS e cópia da nota de liquidação relativa ao ano fiscal anterior, contrato de trabalho e declaração actualizada da entidade patronal a atestar o vínculo laboral, declaração da Segurança Social regularizada a confirmar os descontos efectuados, requerimento em impresso de modelo próprio (www.sef.pt) e duas fotografias. Com todas estas tarefas, por sucessivos dias, a Nágila deixou de aparecer. Andava por Alverca e Lisboa à procura de papéis - belo ideal de vida. Única vantagem: aprimorei a minha capacidade de fazer camas. E vou melhorando noutras tarefas domésticas.
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