Sexta-feira, 31 de Agosto de 2007

O avião

     Tinha eu onze para doze anos quando, naquelas manhãs de sábado em que se acorda cheio de inspirações, decidi que o melhor seria eu fazer um avião. Mas para voar a sério.
     Influenciado talvez pelas histórias em quadradinhos do Cavaleiro Andante, do Falcão ou, muito provavelmente, do Mundo de Aventuras, resolvi iniciar os planos. Coisa modesta, pois acreditava que só com tecnologia simples é que poderia levantar voo, planar e aterrar. Mesmo assim, demorou-me uma semana a elaborar os desenhos, a fazer umas consultas, a conceber o projecto. O que, devo confessá-lo, ser demais para a minha reconhecida paciência. E tudo, obviamente, no mais dos completos segredos.
     No sábado seguinte, por volta das dez e meia, saí de casa e fui chamar o Assis, o meu assistente.
     — Tu estás mas é maluco, completamente chanfrado! — disse-me ele, posto perante os esquemas, com aquele sorriso de incrédulo e ar bonacheirão, com que costumava brindar as minhas cristalinas ideias e os meus mais arrojados projectos.
     — É simples, pá! — explicava-lhe eu, sentados no paredão do jardim, em frente à igreja do Espírito Santo. — O corpo e as asas é tudo em madeira, feitos com aquelas ripas das caixas de fruta do pai do Zé Maria. Pode até pôr-se um bocado de plástico na frente, a fazer de pára-brisas, que é para o piloto não levar com o vento na cara e perder a visibilidade. Estás a ver aqui o desenho? O motor é uma ventoinha igual àquelas do Cine-Arcos que costumam mandar o fresquinho para as cadeiras. Arranca daqui de cima, do paredão, e vai aterrar ali em baixo, no Seixal da Valeta. Se tudo correr como o previsto, consegue pousar mesmo no meio do Poço do Caldeirão, que tem aquela areia toda para amortecer.
     — Mas isto é muito a pique, que diabo! — exclamava-me o Assis, olhando lá para o fundo, mas já angariado para o empreendimento. — E quem vai ser o piloto?
     — É o Hilário, o irmão do Zé Maria, que é mais novo e muito mais leve que nós! — respondia-lhe eu, dando-lhe, na prontidão das minhas certezas, a tranquilidade que as suas muitas dúvidas exigiam.
     — E as rodas? Faltam aqui as rodas!
     — Tens toda a razão! Sabes que não tinha pensado nesse pormenor?
     — Pois! É que sem rodas o rapaz é capaz de ter problemas na aterragem.
     — Se não se arranjarem rodas vai mesmo à hidroavião. Como ali há tanta água!...
     — Mas olha que o moço ainda não sabe nadar!
     — E não sabe andar de bicicleta?
     — Sabe! Nadar é que não!
     — Ó porra, quem sabe andar de bicicleta, aprende a nadar num instantinho!...
     — Também é verdade!
     No dia seguinte, depois de acabada a missa das dez, já depois de eu ter ido fazer umas diligências e novamente sentados no paredão do Jardim, diz-me o Assis:
     — Mas há aqui mais um problema...
     — E qual é? — perguntei eu, já a ficar furioso por ver que me tinha escapado qualquer outro pormenor, daquelas ninharias insignificantes.
     — É que o padre não vai deixar!
     — Deixar o quê?
     — Levantar voo daqui, do paredão!
     — Isso é que era bom! Eu peço ao meu tio, que é presidente da Câmara.
     — Só se for isso! — dizia-me o Assis, já mais convencido. — Mas estou a lembrar-me de outra coisa...
     — O que é agora, Assis, o que é?
     — Como é que tu vais arranjar as caixas de fruta para fazermos o avião, se estás zangado com o Zé Maria?
     — Tens razão!
     — E não te zangaste por ele te dizer, com aquele cabedal todo, que te dava nas trombetas se pusesses o irmão a pilotar o avião?
     — Pois é! Então o melhor é fazermos um submarino de folha, que eu dou-me bem com o Nelo Latoeiro. Até já tenho os planos e tudo.
     — Mas olha que o Hilário não sabe nadar...
     — Também não é ele que vai a pilotar!
     — Então? És tu?
     — Era o que mais faltava! Quem vai és tu, que és o meu assistente e tens um fôlego bestial, pá!

publicado por jdc às 16:18
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