«Mas isto é um elevador, palerma!», exclamava, desesperado, o meu pai, desdobrando-se em explicações, enquanto eu, que me derretia em lágrimas, fazia uma cena de morte e me recusava terminantemente a entrar naquela gaiola de grades de correr, com a alegação, em meu entender irrefutável, de que o meu pai já não gostava mais de mim e de que tudo aquilo não passava de um plano maquiavélico urdido com a conivência da nossa vizinhança em peso, mais a da minha professora, a dona Eduartina, com o evidente propósito de se verem livres de mim e de me despacharem numa jaula, a grande velocidade, para o circo Mariano.
Percebo agora, aliás, porque é que o doutor Duarte, o homem que me tirou cá para fora a troco de sete notas e meia de conto, fazia tanta questão em que o meu pai me trouxesse ao especialista a Coimbra. Obviamente que estava tudo mancomunado.
— Vai subir? — perguntou uma senhora gorda acabada de chegar, virada para o meu pai.
— Eu gostava, mas primeiro queria ver se convencia aqui o meu filho a meter-se no elevador.
— E vamos ter que ficar à espera até que o catraio se decida?
Malcriada, a sujeita. Custava alguma coisa fazer-me uma festa na cabeça, como qualquer pessoa normal costuma fazer aos miúdos?
— São só mais uns segundos, minha senhora, desculpe! — justificou-se o meu pai com aquela boa educação que cativava sempre toda a gente. E virando-se para mim: — Vês o incómodo que estás a causar às pessoas?
Fiz uma cara de quem não percebera a pergunta, até porque a minha preocupação naquele momento era outra.
— Também vai para o circo Mariano, esta senhora? — perguntei eu ao meu pai, mirando-a de alto a baixo e pensando que, a avaliar pela gordura dela, decerto eu iria ter companhia.
Vi-a olhar muito séria para o meu pai, fazer-lhe um aceno de cabeça e empinar o nariz, ao mesmo tempo que levava o indicador direito à altura do canto da testa e, em silêncio, fazia com ele um movimento circular.
— Estou maluco, o caraças! — exclamei eu em voz alta, indignado, dando-lhe ao mesmo tempo uma monumental pisadela para me vingar da indelicadeza da pergunta e da torpeza do insulto.
A gorda deu uns ais de aflição, bufou tal e qual um touro bravo, fitou-me de frente, enfurecida, semicerrou os olhos e tomou balanço preparando-se para me pregar uma valentíssima lamparina. Não fosse o meu pai adivinhar-lhe o gesto e estancar-lhe o braço ainda em pleno vôo, seria eu já a esta hora um puto morto ou, na melhor das hipóteses, teria dado entrada, de ambulância e tudo, na urgência dos politraumatizados do Hospital de Coimbra.
O porteiro do prédio que notara a escaramuça e estava já há muito de olho em nós — que eu vi —, aproximou-se devagar, como quem pisa ovos, com o jornal que estava a ler dependurado, perguntando-nos, com cara de poucos amigos, se havia azar.
— Claro que há! — gritou, já histérica, a gorda. — Então você não vê que o maluco do miúdo e o mal-educado do pai não me querem deixar entrar no elevador?
O meu pai trouxera-me a um especialista a Coimbra, a conselho do nosso médico dos Arcos, por não fazer a mínima ideia do que é que eu tinha. Estávamos agora no átrio do prédio onde o doutor Piteira, o tal especialista, tinha o consultório no quarto andar.
Reconheço que esta viagem — a minha primeira viagem de combóio — fora longa e cansativa. Que estava completamente exausto e com o raciocínio um pouco toldado, sem qualquer clarividência. Talvez por isso mesmo não estivesse na disposição de admitir que nada nem ninguém neste mundo me obrigasse a ter paciência para aturar uma sujeita gorda que eu não conhecia de parte nenhuma e ainda por cima — para mim o mais grave — sendo, como ela era, uma peixeira diplomada.
— Para o quinto, não é verdade, senhora doutora? — perguntou-lhe o porteiro, tentando acalmar a bicha.
Depois dela entrar, vi-o inclinar-se para o interior do elevador e carregar num botão qualquer. Com uma leve vénia fechou as grades da porta e o ascensor arrancou por ali a cima.
— Oxalá essa porcaria — berrei eu, por entre as grades — venha por aí abaixo aos trambolhões quando chegar ao quinto andar, sua anaconda da merda.
— Não se diz isso, menino! — repreendeu-me o meu pai, com pouca convicção.
O porteiro quis, entretanto, saber ao que vínhamos.
— À consulta do doutor Piteira — respondeu-lhe o meu pai.
— Então o senhor não sabe o que se passou? — perguntou o porteiro, pondo subitamente uma cara de infeliz.
Perante o absoluto desconhecimento demonstrado pelo meu pai — e já agora por mim também, que eu nestas coisas gosto de ser solidário —, o porteiro contou-nos que o doutor Piteira tinha morrido há dois dias com uma cirrose no fígado. Uma coisa horrorosa, dizia ele. Ia já verde no caixão, o coitado, e deitava um cheiro de fazer cair o S. Jorge do cavalo.
— Mas não se apoquente que não tem problema nenhum — acrescentou ele, solicito. — A doutora Leonilde ficou com todos os pacientes dele.
— E o consultório é longe daqui? — quis saber o meu pai, com cara de preocupado.
— É aqui no próprio prédio, meu amigo! — exclamou, radioso.
Vi o meu pai respirar de aliviado. Reconheci aquele ar que ele punha quando sentia nem tudo estar perdido.
O porteiro que, entretanto, colocara um daqueles sorrisos patetas, achou por bem acrescentar:
— É aquela senhora forte que acabou de subir para o quinto andar…
Foi como se me tivessem dado com uma bola de futebol no estômago, com toda a força. Senti-me de tal forma angustiado, deu-me tal vontade de chorar, que só tive alento para fazer um bico com os lábios e balbuciar fungoso:
— Pai… quero ir embora para casa!
— Já vamos, meu filho, já vamos! — disse ele, coçando a cabeça.