
Depois da inesperada notícia da morte do doutor Piteira, o especialista de Coimbra onde o doutor Duarte mandou o meu pai levar-me como derradeira hipótese para suprir as suas insuficiências e eventualmente os meus problemas de excitação exacerbada, restava-nos decidir se eu iria ser observado pela substituta do falecido — a canastrona que só não me mandou para os anjinhos com uma valentíssima lambada porque o meu pai lhe aparou a tempo o golpe —, ou, em alternativa, íamos de mãos a abanar para os Arcos.
Pela minha parte já me tinha decidido. E o meu raciocínio não podia ser mais linear: com o cabedal da sujeita e o meu feitio, um novo encontro entre os dois seria irremediavelmente fatal para a minha saúde.
Valendo-se dos seus melhores argumentos e depois de muito suar, o meu pai lá me conseguiu convencer a ir à consulta da tal doutora Leonilde. Naquele seu tom de voz que deixava sempre transparecer serenidade e placidez, com um toque até de alguma bonomia, foi-me dizendo que a médica, apesar daquela gordura toda e de parecer realmente uma anaconda — nessa altura deu-me um toque com o cotovelo no ombro e notei que se abriu num sorriso conivente —, não devia ser má senhora pois, coitada, o problema dela até poderia muito bem ser que fossem gases.
— Gases?! — estranhei eu, mostrando-me deveras céptico. — Não acredito!
— Sim, gases! — reafirmou o meu pai, que passou a desenvolver a sua teoria:
— Nós respiramos, não é verdade?
— Respiramos! — confirmei eu. — E depois?
— E depois, devem ser daqueles gases que nos entram assim sub-repticiamente pela boca e, em vez de irem pela traquéia como normalmente acontece, passam directamente ao esófago. Por circunstâncias que a ciência ainda não conseguiu determinar, mas provavelmente devido aos sustos que a gente apanha, ou talvez por alguma corrente de ar, esses gases entram pelo tubo digestivo abaixo para finalmente — e aqui sim, já se sabe a razão —, por influência do ácido clorídrico gerado no estômago devido às leguminosas que nós comemos, se criar uma corrente quente que, deslocando-se no sentido ascendente, comprime o diafragma, fazendo com que o ar se infiltre rapidamente por tudo quanto é vaso capilar.
Vi-o olhar por instantes para o tecto, pensativo, certamente tentando confirmar se não lhe teria escapado algum pormenor. Aconchegou a minha cara entre as suas mãos e ergueu-me suavemente a cabeça de forma a que os meus olhos encontrassem os seus. Dando ênfase a cada palavra, acrescentou:
— E é isso, resumidamente, o que faz as pessoas inchar e ficarem gordas, estás a perceber?
— Como a anaconda?
— Exactamente, como a doutora Leonilde!
Nunca cheguei a entender por que é que este meu pai, que até nem era um sujeito assim tão alto, tinha tanta sabedoria acumulada, dominando de forma tão irrefutável todas estas complexas teorias. Tinha a certeza de que, se alguma vez o quisesse, facilmente se lhe escancarariam as portas para leccionar nas mais prestigiadas universidades. Nas americanas, por exemplo.
—Não, não estou a perceber! — menti eu, abanando a cabeça, ansioso por me poder maravilhar de novo com tamanha lucidez argumentativa e vendo-o já a metodizar sobre tão cativantes assuntos.
— Quando fores grande perceberás melhor! — exclamou ele, reparando no sorriso matreiro que eu acabara de esboçar, mas trocando-me as voltas, talvez cansado pela energia despendida ao verbalizar tão convincentes preposições. — E agora vamos!
— Mas pelo elevador não! — impus eu, aflito.
— Está bem, pelo elevador não! — assentiu ele, passando a mão sobre o meu ombro direito e impelindo-me para as escadas.
— Ai eu não vou esperar por esta gente toda! — avisei eu, já na sala de espera do consultório, virado para o meu pai, furioso, depois de me ter dado conta que tinha dezassete pessoas à minha frente. — É que nem pensar nisso!
—O menino dos Arcos? — perguntou, pouco tempo passado, a empregada vinda de lá de dentro.
Falara cedo demais, eu. Sou forçado a reconhecer que esta minha maneira de ser tão aberta e espontânea, que me leva a não me debruçar convenientemente sobre os problemas que me surgem e que às vezes me faz ferver em pouca água, ainda há-de ser a minha desgraça. No fundo, como dizia o meu pai, a abadessa da médica até que nem era má sujeita e, ao ver que nós éramos de tão longe, passou-nos à frente daquela catrefada de gente toda.
Entrei, pela mão do meu pai, com os olhos pregados ao chão. Não sei porquê, não me sentia com coragem para olhá-la de frente.
— Então tu és o rapaz que vem dos Arcos! — exclamou, puxando-me para ela e encostando-me àquela barriga descomunal.
Mandavam as regras da boa educação que sorrisse, pelo menos. Olhei-a lá para cima, bem para o cume da montanha, e mostrei os dentes num esboço de simpática candura. O meu pai, entretanto, entregou-lhe a carta que o doutor Duarte mandara e que ela leu depois de ser ter deixado cair pesadamente na cadeira.
Mandou-me despir da cintura para cima e auscultou-me o peito. «Respira fundo!», «isso!», dizia ela, «outra vez!», «lindo menino!», «agora as costas!». Logo a seguir pediu para me sentar e dependurar as pernas. Com um martelo, deu-me umas cacetadas nos joelhos que até os sapatos me iam voando pelos pés fora. Viu-me os olhos com um foco e, finalmente, talvez para justificar o conto e meio que no fim levou ao meu pai pela consulta, remexeu-me nos cabelos, provavelmente à procura de bicharia.
— Vai ter que deixar de tomar chá, café, ou comer chocolates. Tudo o que sejam excitantes — sentenciou no final.
— E medicamentos não toma, senhora doutora? — perguntou o meu pai, admirado.
— O único remédio de que o seu filho precisa, é só um pouco de pimenta na língua, de vez em quando! — disse ela, dando uma sonora gargalhada.
Apesar de não ter percebido a piada — e pelos vistos o meu pai também não, por que se limitou a esboçar um sorriso amarelo —, eu começava já a simpatizar com a sujeita, tanto mais que, ao despedir-se, me deu dois caramelos e fez-me uma festa na cabeça.
Ainda não tínhamos ultrapassado a porta, larguei a mão do meu pai e vim um pouco atrás, em direcção à doutora. Segurei-me com as duas mãos na beira da secretária, mirei-a bem de frente e com um olhar apiedado perguntei-lhe:
— O que a senhora tem são gases, não são?
Não sei porquê, o meu pai, de um repelão, agarrou-me pelo braço e arrastou-me por ali fora, fechando rapidamente a porta atrás de si.
De lá de dentro do consultório ainda ouvi um berro qualquer e um estardalhaço enorme que me pareceu ser o barulho de cacos a desfazerem-se contra a porta.
Para desgosto meu, nunca cheguei a saber o que se passara, tanto mais que nem eu nem o meu pai tornámos a trocar impressões sobre o assunto. Ou voltámos a Coimbra, sequer.