Tinha eu onze para doze anos quando, naquelas manhãs de sábado em que se acorda cheio de inspirações, decidi que o melhor seria eu fazer um avião. Mas para voar a sério.
Influenciado talvez pelas histórias em quadradinhos do Cavaleiro Andante, do Falcão ou, muito provavelmente, do Mundo de Aventuras, resolvi iniciar os planos. Coisa modesta, pois acreditava que só com tecnologia simples é que poderia levantar voo, planar e aterrar. Mesmo assim, demorou-me uma semana a elaborar os desenhos, a fazer umas consultas, a conceber o projecto. O que, devo confessá-lo, ser demais para a minha reconhecida paciência. E tudo, obviamente, no mais dos completos segredos.
No sábado seguinte, por volta das dez e meia, saí de casa e fui chamar o Assis, o meu assistente.
— Tu estás mas é maluco, completamente chanfrado! — disse-me ele, posto perante os esquemas, com aquele sorriso de incrédulo e ar bonacheirão, com que costumava brindar as minhas cristalinas ideias e os meus mais arrojados projectos.
— É simples, pá! — explicava-lhe eu, sentados no paredão do jardim, em frente à igreja do Espírito Santo. — O corpo e as asas é tudo em madeira, feitos com aquelas ripas das caixas de fruta do pai do Zé Maria. Pode até pôr-se um bocado de plástico na frente, a fazer de pára-brisas, que é para o piloto não levar com o vento na cara e perder a visibilidade. Estás a ver aqui o desenho? O motor é uma ventoinha igual àquelas do Cine-Arcos que costumam mandar o fresquinho para as cadeiras. Arranca daqui de cima, do paredão, e vai aterrar ali em baixo, no Seixal da Valeta. Se tudo correr como o previsto, consegue pousar mesmo no meio do Poço do Caldeirão, que tem aquela areia toda para amortecer.
— Mas isto é muito a pique, que diabo! — exclamava-me o Assis, olhando lá para o fundo, mas já angariado para o empreendimento. — E quem vai ser o piloto?
— É o Hilário, o irmão do Zé Maria, que é mais novo e muito mais leve que nós! — respondia-lhe eu, dando-lhe, na prontidão das minhas certezas, a tranquilidade que as suas muitas dúvidas exigiam.
— E as rodas? Faltam aqui as rodas!
— Tens toda a razão! Sabes que não tinha pensado nesse pormenor?
— Pois! É que sem rodas o rapaz é capaz de ter problemas na aterragem.
— Se não se arranjarem rodas vai mesmo à hidroavião. Como ali há tanta água!...
— Mas olha que o moço ainda não sabe nadar!
— E não sabe andar de bicicleta?
— Sabe! Nadar é que não!
— Ó porra, quem sabe andar de bicicleta, aprende a nadar num instantinho!...
— Também é verdade!
No dia seguinte, depois de acabada a missa das dez, já depois de eu ter ido fazer umas diligências e novamente sentados no paredão do Jardim, diz-me o Assis:
— Mas há aqui mais um problema...
— E qual é? — perguntei eu, já a ficar furioso por ver que me tinha escapado qualquer outro pormenor, daquelas ninharias insignificantes.
— É que o padre não vai deixar!
— Deixar o quê?
— Levantar voo daqui, do paredão!
— Isso é que era bom! Eu peço ao meu tio, que é presidente da Câmara.
— Só se for isso! — dizia-me o Assis, já mais convencido. — Mas estou a lembrar-me de outra coisa...
— O que é agora, Assis, o que é?
— Como é que tu vais arranjar as caixas de fruta para fazermos o avião, se estás zangado com o Zé Maria?
— Tens razão!
— E não te zangaste por ele te dizer, com aquele cabedal todo, que te dava nas trombetas se pusesses o irmão a pilotar o avião?
— Pois é! Então o melhor é fazermos um submarino de folha, que eu dou-me bem com o Nelo Latoeiro. Até já tenho os planos e tudo.
— Mas olha que o Hilário não sabe nadar...
— Também não é ele que vai a pilotar!
— Então? És tu?
— Era o que mais faltava! Quem vai és tu, que és o meu assistente e tens um fôlego bestial, pá!
Mabrouk Hidouri é o chefe do Sector 5 do Hotel Mehari, em Hammamet, uma conhecida estância balnear da Tunísia, a quem está acometida a supervisão do restaurante principal, do vasto bar adjacente e de mais duas outras estruturas de não menor importância certamente, mas das quais, por falha minha, não tomei a devida nota no meu bloco de apontamentos.
Homem a rondar os sessenta, encorpado e de baixa estatura, orienta, por debaixo do seu sóbrio fato cinzento escuro, com discreta mas reconhecida eficiência, aquilo que sempre me pareceu ser a difícil tarefa de acomodar num curto lapso de tempo, o imenso mar de gente que, diariamente e em catadupas, acorre ao restaurante para comer o que ciclicamente o seu organismo exige e, o que é pior, esbanjar o que seria mais que suficiente para saciar a fome de quem, um pouco por toda a parte, morre diariamente por causa dela.
Entro no enorme salão e vejo, umas quantas mesas à frente, umas costas esculturais daquela que me pareceu ser uma não menos escultural morena. De suspender, por tempo indeterminado, a respiração ao mais evangélico dos apóstolos. Sozinha, ainda por cima.
O diálogo decorre, naturalmente, em francês.
— Bonjour, monsieur! — disse-me Mabrouk Hidouri ao interceptar-me, com a cordialidade a que já me habituara.
Acerco-me um pouco mais e sussurro-lhe quase ao ouvido:
— Não seria possível sentar-me hoje ao lado da senhora, ali naquela mesa? — perguntei-lhe eu, apontando discretamente com a cabeça a esbelta figura que me chamara de imediato a atenção, ao mesmo tempo que, sub-repticiamente, lhe fazia escorregar para as mãos uma nota de dez dinares.
— Impossible, monsieur! Absolument impossible! — respondeu-me, afastando-se com educado desinteresse, mas com o recato próprio da sua inabalável sabedoria.
— Vinte dinares? — questionei-o eu, insistente, seguindo-o.
— Pas d’insistance, monsieur! Je vous en prie!
— Quarenta dinares, está bem ? — volvia eu, puxando já da carteira.
— Monsieur, s’il vous plait!... — pedia-me Hidouri, dando mostras de um certo desconforto, ao mesmo tempo que indicava uma mesa a outros dois comensais.
— Sessenta e o nome! Quero saber o nome! — e a minha persistência, reconheço-o, começava a ser-lhe embaraçosa.
— Regardez les apparences, cher monsieur! Les apparences…
— Cem dinares ! — exclamei eu, numa derradeira tentativa. — É a minha última oferta, mas tem de ser já!
Mabrouk Hidouri parou. Mirou-me de alto a baixo e, pela primeira vez, olhou-me nos olhos. Com uma voz de ponderada comiseração, disse-me:
— Decididamente, eu desisto de tentar perceber os ocidentais. Se podem ter uma mulher por cinquenta dinares, porque é que teimam em oferecer cem por um homem? E ainda por cima com bigode, mon Dieu?
Nelson Évora venceu há pouco mais de uma hora a prova de triplo salto dos campeonatos de Osaka, tornando-se assim no novo campeão mundial da modalidade. Um resultado brilhante, um feito notável, que vem acrescentar um sorriso, mesmo que ligeiro, a esta apatia generalizada em que nos fizeram mergulhar.
Inicialmente prevista para hoje, a publicação de «Ai simplex!» - a última crónica de Eduardo Prado Coelho -, acabou por ser antecipada pelo jornal «Público» para ontem, domingo.
Transcrevo-a agora aqui, como homenagem ao homem, ao escritor e ensaista desaparecido sábado passado.
Ai Simplex!
Há momentos em que nos damos conta de que o Simplex, essa excelente e meritória iniciativa concebida por Maria Manuel Leitão Marques, está a funcionar, mas há outras em que choramos pela sua ausência, na expectativa de que um dia, não demasiado longínquo para a nossa esperança de vida, chegue. Dei-me conta disso ao acompanhar e mesmo participar no processo de legalização em Portugal de alguém que trabalha em minha casa há já algum tempo, e que, pelas suas capacidades profissionais, e sobretudo pelas suas qualidades humanas (como pude comprovar em período recente da minha existência) é pessoa de quem é fácil gostarmos: a brasileira Maria Nágila Bezerra, pessoa de permanente bom humor, que ri mesmo quando conta as mais terríveis tropelias a que possa ter sido sujeita.
Sucede que há algumas semanas atrás começou a não aparecer ou a chegar mais tarde. Não se tratava, como vim a saber, de deambulações existenciais por montes e vales, nem mesmo de acessos místicos, mas antes de razões infelizmente mais prosaicas: ia ao SEF. Rapidamente descobri que se tratava do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. E pude compreender que o modo de funcionamento desta instituição nem sempre teria aquela perfeição que nós desejaríamos para um serviço público em área tão sensível como esta. Comprova-se que, se por vezes encontramos funcionários amáveis e colaborantes, desejosos de nos facilitar a vida, outras há em que nos confrontamos com pessoas stressadas e amarguradas pelo amarelo das paredes e os dramas conjugais para os quais quase nunca contribuímos mas de que pagamos as implacáveis consequências. Para ir ao SEF, a Nágila levantava-se antes de o Sol nascer para se deslocar de Alverca até Lisboa, onde, às portas do SEF, se organizava uma fila imensa de pessoas que esperavam cinco e seis horas para serem atendidas. E quem as atendia? Gente zangada com a vida que parecia ter uma especial volúpia em criar dificuldades: incapazes de explicarem tudo o que as pessoas precisavam de levar, incapazes de perceberem que as pessoas que atendiam tinham certas limitações na compreensão dos mecanismos burocráticos portugueses, descobriam sempre mais papéis que faltavam, o que obrigava a recomeçar tão exaltante peregrinação.
Tenho à minha frente o papel que acabou, ao cabo de porfiados esforços, por lhe ser dado e que, num português em que “há menos” se escreve “à menos”, se intitula “Renovação de Autorização de Permanência Temporária para Trabalho subordinado”, esclarecendo-se, para consolo das nossas almas, que é ao abrigo do art. 217, n.º 1, da Lei 23/207 de 04 de Julho. Que é preciso? Um passaporte válido, um comprovativo das condições de alojamento (contrato ou atestado da Junta de Freguesia), declaração do IRS e cópia da nota de liquidação relativa ao ano fiscal anterior, contrato de trabalho e declaração actualizada da entidade patronal a atestar o vínculo laboral, declaração da Segurança Social regularizada a confirmar os descontos efectuados, requerimento em impresso de modelo próprio (www.sef.pt) e duas fotografias. Com todas estas tarefas, por sucessivos dias, a Nágila deixou de aparecer. Andava por Alverca e Lisboa à procura de papéis - belo ideal de vida. Única vantagem: aprimorei a minha capacidade de fazer camas. E vou melhorando noutras tarefas domésticas.
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