Quinta-feira, 9 de Agosto de 2007

Valores...

 

   O Arturinho não morreu. Apagou-se. Assim, puff..., suavemente. Sem pecados para confessar, mágoas para carpir ou rancores para purgar. Esgotou-se-lhe a vida, como balão que se esvazia, fósforo que chega ao fim, ou barco que se afunda em mar de tranquilidade: plácida e serenamente .
   Nunca dele veio mal ao mundo; nunca, às mãos dele, pereceu a virgindade de qualquer donzela ou de quem quer que fosse; nunca, por ele, alguém perdeu a camioneta do Salvador para Braga, do Domingos da Cunha para Balugães ou da Automotora para o Porto; nunca, o Arturinho, deixou de lavar os dentes com pasta medicinal, quatro vezes ao dia, sacramentalmente, tal como aconselhavam no rádio; nunca, aquele santo, se queixou à Guarda das uvas americanas, que todos os anos e por sistema, lhe roubavam da quinta que herdara de seus paizinhos na Guia; nunca, mas mesmo nunca, deixou de participar como fervoroso praticante da ritualidade católica, que às onze de cada domingo se celebrava na igreja da Lapa;  nunca ninguém o viu na sala de jogo clandestino do Arcuense a aventurar-se na lerpa, no king, no abafa, ou sequer no sete-e-meio.
   Não fazia ondas, o Arturinho, nem mesmo quando morreu, coitado. Que não morreu, como se sabe. Apagou-se, assim ó…puff!
   Nunca se viu beber um copo, um que fosse, na tasca do Juca, na Regional, na Tininha do Miguel ou noutra taberna qualquer; nunca cobiçou mulher do próximo porque para ele, não que mulher não fosse, mas o próximo era sagrado; nunca, pelo menos que isso tenha constado, saiu dos Arcos, nem mesmo para ir a banhos a Âncora, como fazia toda a gente naquela época com o seu estatuto e na sua posição; nunca comprou sabonetes Heno de Pravia, chocolates ou caramelos espanhóis de contrabando; nunca se lhe conheceu cor política ou participou numa eleição. Não porque não as havia, mas porque insistia, mesmo não as havendo, em ser de manifesta neutralidade.
   Não gostava de pepino, que o fazia arrotar, de ovos escalfados com ervilhas pelo seu adocicado, de favas com chouriço que lhe davam voltas ao estômago, de sável de escabeche que se perdia no meio de tanta espinha, do Antunes da farmácia e do cheiro dos seus pés, de fazer a barba em casa porque se cortava todo, ou de andar de bicicleta porque se os tivesse, com a sua falta de jeito, daria de certeza cabo dos cornos.
   Era assim uma espécie de amor-perfeito, o Arturinho, quando partiu desta vida. Que não morreu, como se disse. Apagou-se, coitado… puff!
   Todo ele era um manancial de boas maneiras: era incapaz duma maledicência ou blasfémia, de pôr a língua num selo de correio, de sair de casa em jejum, de vir regar os crisântemos do seu quintal em pijama, de cuspir para o chão, da cantarolar modas brejeiras, de urinar sem levantar o tampo da sanita, de ouvir um relato de futebol, de apalpar o rabo à leiteira como eu cheguei a fazer tantas vezes, de dirigir-se a desconhecidos que não fosse por vossa excelência. Era incapaz até, acreditem, de dar um traque, por mais de mansinho que fosse. Talvez tenha sido por isso mesmo vão ver, não que tenha morrido –  pois já se sabe que não morreu – , mas que se tenha apagado. Atulhado em gases.
   Tem acontecido aos melhores.
   Palavra!

publicado por jdc às 10:19
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Quarta-feira, 8 de Agosto de 2007

TAP nunca mais!

  

   Eu, pelo menos, sempre o imaginei assim: zangado. Acordando mal disposto, rezingão, acrimonioso. Cuspindo fogo e impropérios. Tal e qual o Porto, o Futebol Clube do Porto.
   Temo ser injusto, mas é assim que eu sinto os dirigentes do clube das Antas, permanentemente com cara-de-pau, emproados, transpirando auto-suficiência balofa, de mal com Deus e o diabo, como se toda a gente lhes devesse dinheiro e ninguém lhes quisesse pagar.
   Mas depois deste desabafo vamos ao que interessa:
   O avião da TAP que transportou a equipa do FCP da Holanda - onde venceu o torneio de Roterdam - para o Porto, com escala anunciada em Lisboa, partiu de Amsterdam com um atraso de duas horas, facto que nestas coisas de tráfego aéreo toda a gente sabe que é o pão nosso de cada dia.
   De qualquer forma um atraso é sempre um atraso, e duas horas dão perfeitamente para perder alguma da serenidade em que são pródigos quer os dirigentes quer os jogadores de futebol.
   Chegado o avião a Lisboa, foram os passageiros informados de que seria necessário mudar de aeronave (o pessoal de bordo gosta muito destes termos) para rumar à Invicta.
Convenhamos que depois de duas horas para os procedimentos habituais do chek-in, do atraso de outras duas no aeroporto holandês e mais três horas e meia de voo, a cara do maralhal por mais este contratempo não deve ter sido da mais prazenteiras.
   Como se isso já não bastasse e para agravar a situação, verificou-se, depois dos passageiros acomodados em novo avião, que havia mais viajantes que lugares, tornando-se necessário parar um pouco para pensar e resolver mais este imbróglio.
   Está bom de ver que quem viria a pagar com as favas seriam, obviamente, os comissários de bordo, que devem tê-las ouvido bonitas. De murcounhe para cima.
   Ora quem não gostou nada dos impropérios, foi a chefe de cabina, a quem Antero Henrique, director da SAD portista, teria acusado de «estar com cara de parva», e, por via disso e por não ser de modas, se decidiu a chamar a polícia para, sustentada esta pela mão pesada da lei, identificar o desnorteado dirigente e impedi-lo de viajar.
   Solidária com o seu director, toda a equipa saiu de imediato do avião, para, numa decisão certamente ponderada, tomada em ambiente propício para o efeito e num clima calmo como se adivinha, ir toda a gente de autocarro para cima. Pelos vistos já ninguém estava com pressa.
   Mais ponderada contudo foi a decisão anunciada logo a seguir pelo clube: pela TAP, nunca mais!
   Estou mesmo a vê-los!...

publicado por jdc às 15:53
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Besançonne-Louise

foto de Anna Behm/escultura de Fernando Botero

 

   A minha recente e breve incursão pelas Antilhas francesas, de que Marie-Galante e o restante arquipélago de Guadeloupe fazem parte, serviu-me também, como sempre tanto me entusiasma fazer, para ir revisitando ou mesmo descobrindo a História. Na circunstância, desta terra de Arauaques, gente índia, aguerrida, que povoou todo o norte da América do Sul e muitas das ilhas deste imenso Mar das Caraíbas e que soçobrou às mãos da saga desbravadora e à força de devastadoras armas dos conquistadores europeus. Tanto de espanhóis como de franceses, ingleses ou holandeses.
   Depois de ter chegado bem cedo a Grand-Bourg e alugado um automóvel – se é que aquilo algum dia tivera merecido tal nome –, não perdi tempo a meter-me a caminho de Saint-Louis, dado que o último ferry para Guadeloupe, onde me tinha baseado, partia às quatro e um quarto da tarde.
   Avistei-a de repente, logo quando fazia a primeira curva à saída da cidade. Um corpo descomunal, paquidérmico mesmo, quase no meio da estrada, com o indicador da mão direita estendido, em repetidos movimentos de cima para baixo, parecendo querer livrar-se da cinza de cigarro inexistente, e que, se eu ousasse, me impediria claramente de progredir a marcha do carro.
   A minha primeira impressão sugeriu-me aquelas meninas de pé-de-estrada, bem nutridas e com um exuberante pneu espartilhado a custo por debaixo de vestidos de algodão sempre colados ao corpo e cronicamente subidos, à beira da pré-reforma que, a troco de uma compensação discutida muita das vezes ao cêntimo, costumam fazer uns favores a camionistas com os olhos sempre flamejantes de testosterona e a palavra sexo a tatuar-lhes a testa de lés-a-lés.
   Algo me avisou, entretanto – talvez o meu subconsciente, mais traquejado em lucubrações filosóficas sobre questões de tamanha delicadeza –, que aqui não deveria haver disso, apesar da enorme bolsa em pele de vaca que trazia à tiracolo poder indicar precisamente o oposto.
   Ao mesmo tempo que desviei repentinamente o volante para o lado esquerdo, a fim de não ser abalroado por aquela mancha a que os raios de sol matinais emprestavam um ar de multifacetadas tonalidades, consegui manobrar os travões de tal forma que parei precisamente a seu lado.
   – Besançonne-Louise, anchantêe! – Avançou ela de pronto, acabada de se instalar com descarado alarido no carro, rasgando um sorriso de orelha a orelha, e atravessando o seu braço direito na minha direcção, mesmo por cima daqueles fartos seios que se encavalitavam já em cima do tabliê, quase se comprimindo contra o pára-brisas, para que assim pudesse, não sem alguma teatralidade, entregar-me a sua mão gorda e papuda, para um passou-bem de inesperada cortesia.
   – Sanluí, silvuplé! – Disse-me ela sem me dar espaço sequer para abrir a boca.
É claro que senti uma enorme dificuldade em explicar-lhe, em francês, a uma crioula que apesar da descomunalidade do seu corpo, seguramente dando três do meu, mas que começava a reparar até que tinha uma cara simpática, bonita mesmo, de pele em tom chocolate acetinado, de que não era taxista e de que o meu carro, apesar de alugado e de eu ser claramente adepto dos desígnios da Revolução Francesa, não estava ao serviço da comunidade.
   Depois de toda a minha atrapalhada argumentação, deu uma estridente gargalhada que fez estremecer de forma assustadora todo aquele seu arcaboiço – mais o carro –, olhou-me com uns olhos doces de amêndoa, presenteando-me com uma enorme palmada no ombro que eu, denotando habitualmente algumas dificuldades na retroversão de linguagem gestual, não consegui deixar de perceber como um inequívoco «vamos lá para Saint-Louis e deixa-te de merdas!».
    E arranquei. No fim de contas, conclui eu resignado, para quê armar-me em difícil se ia para Saint-Louis mesmo?

publicado por jdc às 09:51
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Terça-feira, 7 de Agosto de 2007

Marie-Galante

  

 

   Pouco importa para início de narrativa que naquele domingo, 3 de Novembro de 1493, tenha chovido ou não. Mas o grau de probabilidade para que isso tivesse acontecido é todavia grande, pois por aquelas paragens, apesar do calor que sufoca e da humidade que nos dá cabo da alma, é raro o dia do ano em que as nuvens que enxameiam as montanhas, sopradas por inesperados ventos marinhos, não se esvaiam pelas planícies afora em tormentosa aguada.

   Não estou certo também – porque disso não vi qualquer referência na documentação que consultei – que tenha sido rezada missa em louvor do cometimento, ou qualquer cerimónia pagã para glorificar a ocorrência. Mas o que importa, porque são esses os factos com que realmente se escreve a História, é que foi nessa data que Cristóvão Colombo, no decurso da sua segunda viagem às Índias Ocidentais, descobriu uma pequena porção de terra, uma ilha de um redondo quase perfeito, de quinze quilómetros de diâmetro, a que deu o nome da sua nau-almirante: Maria Galanda.
   Bastante anos mais tarde, em 1648, uma meia centena de franceses iniciou a colonização da ilha, reformulando-lhe desde logo o nome para Marie-Galante. Até hoje.
   E foi atrás deste nome, bonito, de alegre sonoridade, que bem cedo na manhã de quinta-feira da semana passada, me vi de repente metido num ferry e me deixei levar até lá, enleado nas teias que a minha curiosidade sempre gostou de tecer.
   «Mas já não há escravos?», perguntei eu, na minha santa inocência, acabado de desembarcar em Grand-Bourg, a capital, a um empregado crioulo duma agência de aluguer de automóveis, admirado por não ver no largo fronteiro ao porto ninguém em tronco nu, atado a um poste, e a escorrer sangue pelas costas abaixo, incontornável vestígio da cruel punição e das impiedosas vergastadas com que os capatazes das plantações de cana-de-açúcar costumavam brindar os mais madraços para os obrigarem a encarreirar.
   – Nu sóme à da mile ê sète, mêssiê! – começou ele por me advertir, num francês do tipo açoriano e com o dedo em riste bem colado ao meu nariz  –
Pur vótre anfórmàción lèsquelávàge é fini à mile uítesam carrantuíte! Èsseque jmfé comprândre?
   – Assim já há tanto tempo? – perguntei-lhe eu feito murcounhe, no meu francês que vai dando para os gastos, é certo, mas mesmo assim reconhecido por gente entendida como sendo mais parecido com o catalão ou até mesmo a arrepiar para o basco.
   – Ùí! – respondeu-me ele, telegráfico e claramente incomodado.
   Depois de umas palmadinhas nas costas e uns sorrisos meio imbecis que fui obrigado a fazer para restabelecer a confiança, lá consegui que me alugasse um carro. Os setenta e dois mil trezentos e vinte e sete quilómetros escancarados no contador, a porta do lado direito metida dentro, o pneu suplente vazio, a falta do espelho retrovisor do meu lado, o vidro de trás com orifícios de duas valentes pedradas e a pintura descascada pelo sol, indiciavam que pior o sujeito não me poderia ter arranjado. Isso não foi todavia impeditivo de eu me fazer alegremente à estrada em direcção a Saint-Louis, à procura de aventura. Que não tardou.

publicado por jdc às 17:06
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A História Devida

 

A minha história «O Living Museum», escrita a propósito de uma viagem a Nova Iorque, volta hoje a ser lida aos microfones da RDP/Antena 1 pelo actor José Pedro Gomes, no programa «A História Devida», às 17:20, 21:20 e 02:20.

Para quem não tiver oportunidade de ouvi-la, ela irá estar disponível em podcast no site da Antena 1 http://multimedia.rtp.pt/index.php?prog=2145

 

 

 

De 2ª a 6ªfeira (17:20, 21:20 e 03:20)
Porque toda gente tem uma história para contar...
Um programa diário da RDP, apresentado por Miguel Guilherme e por Inês Fonseca Santos, baseado no conceito posto em prática por Paul Auster nos Estados Unidos da América.

 

Terça-feira, 7 de Agosto: O Living Museum, José Domingos Costa
Esta é a primeira história lida n’A HISTÓRIA DEVIDA que se passa em Nova Iorque. Por isso, tem esse ambiente da paisagem nova-iorquina e fala de museus, do Starbucks, dos arranha-céus, da 5ª Avenida, das maravilhosas pastelarias... É uma história sobre uma pequena confusão que teve origem na expectativa que o narrador tinha de encontrar, num museu nova-iorquino, aquilo a que ele chama «performances pós-modernistas»

 

Quarta-feira, 8 de Agosto: Segunda-feira de Páscoa, Isabel Furtado de Mendonça
Uma história sobre uma cadela chamada Lira passada num tempo em que uma família inteira trabalhava no mesmo negócio. É uma história sobre uma prova de amizade e lealdade dada por um animal às pessoas a quem se afeiçoou: «Como era um talho de grande movimento, grande era o número de rafeiros que por ali circulavam à espera de um naco de carne. Toda a família os afugentava, pois tais rafeiros só traziam mais distúrbios aos outros animais. Entre eles encontrava-se Lira, uma cadela de pêlo curto e branco, e com uma pata coxa (fruto de um acidente perto da linha do caminho-de-ferro que passava nas redondezas).»

Quinta-feira, 9 de Agosto: : História de vida, Maria da Conceição Cruz Mira
Uma história divertida sobre um pequeno equívoco capaz de demonstrar como a língua portuguesa se presta a grandes confusões linguísticas: «Chamo-me Conceição, mas todos me tratam por São. O meu último nome de solteira é Cruz, mas tinha-me casado recentemente e ainda não me era habitual dizer Mira. Então vacilei: São
Cruz ou São Mira? Bom, optei e respondi: - São Cruz. Houve uma pausa na resposta da senhora.»

Sexta-feira, 10 de Agosto: O Sud-Expresso, João António da Cruz
Uma história contada por alguém que partiu em busca de um futuro melhor. A história passa-se numa estação de comboios e prova como o chamado "bom português" nunca se livra de ouvir uma grande lição...: «O estreito corredor que se estendia ao longo da via férrea, cercada por um alto gradeamento e limitado pelo desnível do fosso onde assentavam os carris, ficou em poucos minutos pejado de emigrantes portugueses que seguiam em busca da terra prometida. Entorpecidos por longas horas de viagem, estendiam-se aos poucos pela pista, acomodando as suas traquitanas como vendedores num mercado de rua.»  

 

publicado por jdc às 11:39
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O Rato equilibrista

 

   Lembro-me tão clara e distintamente como se fosse hoje: fazíamos um magote quase compacto, os seis ou sete do costume, ajoelhados junto aos três degraus do altar, compenetrados a rezar, naquela missa das dez. Por altura do sanctus, ou das campainhas, como nós dizíamos, o Zé Ramalho deu-me uma cotovelada, fazendo-me um sinal com a cabeça para olhar em direcção à parte inferior do altar. Vi, espantado, junto do rodapé dourado, mesmo por detrás dos calcanhares do padre Antero, um rato pouco maior que uma mão-travessa, a passear-se com despudorada tranquilidade. 
   O Jorginho Malaguetas, que estava do meu lado esquerdo, apercebendo-se da situação, sussurrou qualquer coisa para o Berto Zeferino que, encolhendo a cabeça entre os ombros, tapou a boca com a mão e deu daquelas gargalhadas silenciosas, que a circunstância exigia e coisa em que ele era mestre. Entretanto, o rato, talvez assustado pelo ruído das campainhas, e isso eu vi perfeitamente, correu sobressaltado e célere para uma estreitíssima nesga que havia na ponta do altar, enfiando-se no buraco.
  — O rato fica por minha conta! — Disse o Zé Ramalho, depois de acabada a missa, quando nos sentámos no paredão do jardim.
   — E para que é que queres a porcaria do animal? — Perguntou o Mário Fanfas.
   — Estão a ver aqui a minha bota? — E enquanto perguntava isto, o Zé Ramalho premia a ponta da sola contra a terra batida e girava-a para um lado e para o outro, como quem esmaga uma ponta de cigarro. — Esborrifo-o de tal maneira que nunca mais se lembra do dia em que nasceu.
   — É que nem penses nisso! Tadinho do inocente! — Exclamava o Berto Zeferino. — Eu adopto-o.
   — Podíamos encher o buraco do altar de fumo, como se faz às abelhas, mas do tóxico, tipo concentrado de ácido sulfídrico, e ele bumba, apaga-se completamente — sugeria o Jorginho Malaguetas que era o perito do nosso grupo em torturas, golpes de mão, especialidades dissuasórias e manobras de diversão.
   — E tu queres adoptá-lo para quê? — Perguntei eu ao Zeferino, com uma certa dose de curiosidade.
   — Ensinava-o a fazer habilidades.
   — Eu dou-lhes as habilidades — ameaçava o Zé Ramalho tornando a espremer a bota contra o chão, gingando-a. — Assim, ó!...
   O Berto Zeferino exclamou, com inesperada firmeza, que nem pensasse nisso. Disse que lera uma vez num livro que os ratos podiam ser ensinados a vir comer à mão, a andar só em duas patas e a empurrar carrinhos de linhas, por exemplo. E que até conseguiam andar no trapézio, como os equilibristas do circo.
   — Então se tu consegues ensinar o gajo — concluía o Mário Fanfas —, podemos mostrar essas acrobacias às pessoas e cobrar bilhetes.
   — Até que nem era má ideia...  — acrescentou o Lamparina Apagada.
   — E já agora, para completar o espectáculo, púnhamos também um número com pulgas amestradas, daquelas que ninguém vê, não?! — Acrescentava o Zé Ramalho, verdadeiramente decepcionado, por ver fugir-se-lhe a oportunidade de fazer o gosto ao pé.
   — Eu estou com o Zé Ramalho — esclarecia o Malaguetas —: esborrifa-se o desgraçado!
   É evidente que perante tão declarado conflito de interesses, tivemos que colocar a vida do rato pendente do resultado de uma pouco ortodoxa votação de braço no ar. Venceu a avidez do dinheiro, o «show business». Venceram aqueles que, talvez por ignorância — comigo incluído — eram pela exploração ignominiosa e abjecta das habilidades do pobre infeliz, a troco de umas hipotéticas migalhas para gelados e caramelos. Os outros mais radicais, o Zé Ramalho e o Jorginho Malaguetas, os únicos favoráveis a uma solução holocaustiana para o desditoso roedor, apesar de vencidos e num gesto apreciado por toda a gente, manifestaram a sua vontade de se submeter aos desejos da maioria, não pondo assim em causa a decisão do colectivo.
   — Então há que ir buscá-lo! — Exclamou o Berto Zeferino, com aquele seu sorriso aberto que se lia nos seus olhos piscos, por detrás das lentes de vidro de fundo de garrafa.
E assim fizemos. Estávamos nós todos, de cócoras, a acenar com um bocado de trigo para o buraco e chamando «bexiguim, bexiguim, bexiguim» — não sei quem se lembrou disto, mas de certeza que este tipo de chamamentos nunca deve ter resultado com ratos —, quando se aproximou por detrás de nós o tio Antone sacristão.
   — É disto que vocês andam à procura? — Perguntou ele, mostrando-nos, sorridente, e dependurado com o rabo preso entre o polegar e o indicador da sua mão direita, o rato imobilizado, definitiva e irremediavelmente já cadáver. 
   — Então você foi matar o bichinho, tio Antone? — Questionou, estupefacto primeiro, verde de comoção depois, o Berto Zeferino.
   — Eu não! Foi o veneno que o senhor abade pôs para aí em todo o lado.
   — Isso não se faz! É indecente! Matar assim o pobre animal!... — Recriminava o Zé Ramalho, esquecendo-se que a solução que apontara anteriormente para o extermínio do rato era muito mais sanguinolenta e angustiante.
   Claro que diante deste panorama, a desilusão abateu-se inexoravelmente em cima de todas as nossas cabeças. Lá se foram, portanto, os nossos sonhos de amestradores de ratos e, por consequência, de virmos a auferir os correspondentes resultados financeiros da nossa futura incursão pelos sempre profícuos terrenos empresariais do mundo do espectáculo.
   E vínhamos nós quase a passar a porta da sacristia, acabrunhados, interiorizando a nossa desdita, quando o Berto Zeferino estacou e fez um «shhhht!» a recomendar-nos silêncio. Ouviu-se, ouvimos todos nós então, distintamente, entre a quietude daquelas sagradas paredes, o chiar de um rato. Olhámos para o rodapé do altar e lá estava ele, o sacana, a desafiar-nos, com o nariz empinado e a mexer, para um lado e para o outro, o seu longuíssimo rabo.
   Pelos vistos, o rato que o tio Antone nos mostrara era irmão, pai, ou afilhado, não importa, do nosso Policarpo, como o Jorginho Malaguetas lhe chamou de imediato, atirando-lhe cuidadosamente com uma bucha de pão. O que é certo é que comeu tudo e, quando o Berto Zeferino o chamou com um «bexiguim, bexiguim, bexiguim», o safado veio, todo lampeiro, comer-lhe à mão.
   Estava, assim, dado o primeiro passo dum longo mas promissor percurso da carreira artística do Policarpo e do nosso frutuoso negócio. O mais difícil ainda estaria, contudo, para vir: como conseguir autorização do secretário da Câmara para realizar os espectáculos. Até pôr o rato a fazer triplo salto mortal e de costas, era, de certeza, muito mais fácil.

 

publicado por jdc às 00:25
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Segunda-feira, 6 de Agosto de 2007

O fascínio que África nos provoca

 

   Aconteceu há uns meses: T., uma amiga minha documentalista na Assembleia da República – e decidi chamar-lhe T., na tentativa de preservar um pouco a sua privacidade – foi convidada para integrar uma missão da União Interparlamentar Europeia destinada a reestruturar e agilizar o funcionamento da Assembleia Nacional de uma antiga colónia espanhola da costa ocidental africana.
   Manifestou-me ao telefone, de forma quase infantil, a sua excitação perante a encantadora perspectiva de viajar para um continente com tanta aura de exotismo, de mistério até, materializado nas suas selvas impenetráveis, nos seus animais selvagens, nas suas civilizações perdidas, enfim, acrescentava-me ela com saborosa ironia, poderia ser até uma altura soberana para tentar dar continuidade a um dos desígnios do nosso D. Afonso V, levando finalmente a cabo a descoberta do reino de Prestes João.
   Era fim de tarde. Estávamos junto ao rio, ao fresco, sentados na esplanada dum daqueles bares simpáticos do cais de Alcântara. T. combinara este encontro comigo porque queria que lhe contasse, de viva voz, tudo o que sabia sobre África, daquele continente que só de imaginar-se nele – dizia-me ela perpassada pela efervescência –, lhe fazia arrepiar os pelos dos braços e cuja realidade ela estava farta de saber que eu conhecia com alguma proximidade.
   Não estava obviamente nos meus planos arrefecer-lhe o entusiasmo, falando-lhe das desgraças em que muitas das nações africanas, não poucas vezes, se viam submergidas. Nada lhe disse sobre os massacres registados às mãos de déspotas sanguinários, das barbáries cometidas em estúpidas guerras civis originadas pelo controlo de zonas diamantíferas, do genocídio que ainda hoje se vive no Darfur, a oeste do Sudão, perante a indiferença cúmplice da comunidade internacional.
   Reconheço agora, passado este tempo todo, ter havido alguma inabilidade da minha parte ao orientar a conversa da forma como acabei por fazê-lo. Numa atitude de que me arrependo com alguma dose de amargura, preferi dissertar sobre saúde e seus cuidados conexos, para que partisse prevenida. Achei por bem transmitir-lhe tudo aquilo que sabia sobre febre tifóide, malária, cólera, febre hemorrágica, dengue…
   «E sexo, não se pode?», perguntou-me ela a determinada altura, interrompendo-me e pousando a sua mão no meu braço, indiferente ao ruído de um comboio que circulava ali por cima na ponte, e ao mesmo tempo que o olhar, absorto, se lhe perdia na outra margem do rio.
   Alguma coisa cá dentro me instruía para que ignorasse a pergunta que acabara de ouvir. Continuei tranquilamente a discorrer sobre os males do sida, da febre amarela, do vírus de Marburg, da elefantíase, da leishmaniose e sobre um micróbio esquisito que se entranha por debaixo das unhas e de que não me recordo agora o nome.
   E esta minha mania de me entusiasmar quando falo sobre temas que domino com alguma razoabilidade, levou-me a rematar com esta tirada realmente pouco afortunada: «E depois há ainda o problema da pororoca!».
   Vi subitamente a minha amiga empalidecer, levantar-se tremelicando e comprimir o peito com a mão; fazer, como se vê muito nos desenhos animados, um esgar de aflição apoiando-se ao mesmo tempo no tampo da mesa; contorcer as pernas, virar-me as costas, e desandar, enfunada, a dar aos ombros.
   O meu pasmo e a minha boca escancarada pelo inusitado da situação, não foram suficientes, contudo, para me impedir de ouvir as suas derradeiras palavras, enquanto se afastava desabrida:
    — Ah não, pelo amor de Deus, pororoca nunca!

publicado por jdc às 23:56
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O Domador

 

 

   «Um dia destes ainda ficas sem cabeça, vais ver!» avisavam-no, vezes sem conta, perante as suas arrojadas proezas, os colegas de trabalho e os amigos mais chegados: o malabarista Tenório, o palhaço rico Ferdinand, o prestidigitador e afamado ilusionista Karmal, os trapezistas búlgaros Irmãos Constantinof, Rajastan o faquir engole-espadas, a fogosa trapezista Monique Didier, esposa do senhor Cardoso, o dono do circo; a menina Amélia, do guarda-roupa, a dona Constança pregadeira, o Lopes electricista, o Jagunço, que dava de comer aos bichos, o Matos da bilheteira, e até o Leopoldo Nobre Pais, o arrumador.
   Como que dando o peito às balas na mais sangrenta das batalhas, como que irrompendo afoito pelas labaredas adentro, no mais incontrolável dos incêndios, como que apostando tudo no mesmo cavalo, na mais decisiva das corridas, como que gastando o derradeiro fósforo para se safar do mais escuro dos precipícios, Laléu, o domador, enfrentava as feras com a audácia dos indómitos, o arrojo dos insubmissos e com a bravura do maior e mais aclamado dos heróis, arrancando da plateia, invariavelmente, noite após noite, os mais vibrantes aplausos, as mais calorosas ovações.
   Arrepiavam-se os espectadores, varados de medo, quando viam aqueles leões de extraordinária envergadura, de fenomenal arcaboiço, de pata erguida, garras à mostra, bem ameaçadoras, a atirarem-se nitidamente para cima do artista e este, demonstrando admirável jogo de cintura e refinado instinto de sobrevivência, enganar as bestas desviando-se para o lado exactamente contrário ou então — e isso eu constatei ser recorrente em muitos dos seus espectáculos — baixar-se subitamente, permitindo que o leão saltasse por cima dele.
    E era neste complicado jogo de cumplicidades, neste estranho xadrez de conivências — e era minha forte convicção que elas sempre tivessem existido, pois sem cumplicidades, sem conivências, sem leões mancomunados com domadores, não haveria sustento nem para um lado nem para o outro — que a encenação se ia desenrolando, para gáudio da assistência que via a adrenalina subir-lhe, do senhor Cardoso que via as receitas engrossarem-se, do João Capêlo, companheiro, paixão e empresário dedicado de Laléu, que vivia em lua-de-mel permanente com aquela bravura de homem.
   Até que uma noite, quando menos se esperava e as coisas estavam a correr tão bem, no preciso momento em que Laléu, com a mesma determinação e serenidade com que sempre o fizera, se preparava para o momento alto de todos os seus espectáculos, o seu derradeiro instante de apoteose, metendo a sua cabeça na bocarra de Zanzibar (o leão mais velho) este, sabe-se lá porque motivo, decidiu mandar às ortigas todas as suas anteriores combinações, todas as suas obrigações para com o dono do circo, para com o domador e até para com os seus colegas felinos, num gesto incompatível com as regras da mais sã convivência, decapitou de um só golpe o Laléu, arrancando-lhe a cabeça.
   A moral da história — se é que há alguma moral nesta história — é que em matéria de compromissos nada poderá ser por trinta e um de boca. Só por escrito, realmente.

 

publicado por jdc às 23:44
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À espera do deslize

foto de Joaquim Antunes

abut

 

   Na Assembleia-Geral que elegeu o engenheiro Pompílio como 23º presidente do glorioso Imortal Clube, toda a gente o ouviu prometer que nesse ano é que era.

   «Chega de tanto jejum, basta de tantos anos de infortúnio!», proclamava categórico, naquele seu inflamado discurso de posse, perante a massa associativa que o vitoriava.

   «Deus não pode ser tão injusto para connosco», recordam-se de o ouvir dizer ainda hoje, muitos daqueles que estavam lá presentes nessa jornada memorável.

   A poeira entretanto assentou, a euforia passou, e não falta agora quem lhe aponte o dedo. Principalmente o Almeidinha, o candidato derrotado, que na noite da eleição, de bloco em punho, foi anotando todas as promessas que o engenheiro fazia. Para o que desse e viesse.

   Apesar da boa-vontade demonstrada por Pompílio nas contratações que fez com dinheiro saído do seu próprio bolso, os reforços que foram chegando à equipa nesse ano (Jandir, Rubem, Denildo, Rimaldo, Juskoviak, Krotchenko e Lindinho), não trouxeram mais-valia substancial à produtividade do plantel que, no dizer amargurado de muitos adeptos que entre o angustiado e o boquiaberto ainda persistiam em assistir aos inqualificáveis jogos do seu querido clube, se situava «nitidamente abaixo de cão».

   Degrau a degrau, o Imortal foi-se estatelando na lama da mediocridade, afundando no pântano da inoperância, sepultando, cada vez mais irremediavelmente, no poço da adjacência.

   De chicotada psicológica em chicotada psicológica foram caindo, sob a espada democliana do engenheiro Pompílio, os treinadores incompetentes, os guarda-redes comprovadamente aselhas, os defesas inábeis ou mesmo vesgos, os médios-ala com a mania de pombos-correios e os avançados com mais de 45.

   Mudou-se radicalmente a estratégia e institui-se uma outra filosofia no grupo. Rejuvenesceu-se a equipa só com filhos da terra: o João Luís, o Artur, o Fintas, o Ricardo, o Escadote, o Neto, o Leite, o Primor e sei lá bem quem mais. Até a Maria Armanda, que sempre fizera tudo por dinheiro e de quem se esperava qualquer coisa menos um nobre gesto de altruísmo, se prontificou a dar uma ajuda como psicóloga da equipa.

   No horizonte perspectivam-se agora melhores dias. Para o clube e, concomitantemente, para o engenheiro Pompílio, seu presidente.

   Mas não se pense porém que tudo são rosas. Não, porque o Almeidinha, qual abutre impiedoso, qual milhafre implacável, continua vigilante à espera do deslize definitivo do engenheiro. O tal erro fatal que há-de conduzir o crónico opositor finalmente aos comandos do Imortal.

publicado por jdc às 21:31
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