Sexta-feira, 28 de Setembro de 2007

As Palavras Escapam-se-me!

    

 

     O meu merceeiro, Florindo Estrompa, é um paz-de-alma. Alentejano dos lados de Serpa, costuma dizer que palavras levas o vento. Quer ele dizer com isto, que o que conta são os sentimentos das pessoas, é aquilo que lhes vai na alma.
     Expansivo, de verbo fácil, nem sempre contudo o resultado das suas inocentes palavras é entendido da forma mais conveniente, como demonstra, aliás, o diálogo que ainda há bem pouco testemunhei no seu estabelecimento, a dois passos de minha casa. Querem ver?
     — Então dona Beatriz, sempre quer os duzentos e cinquenta gramas de fiambre?
     — Sim, mas não quero as fatias tão grossas como as que me cortou da última vez, tenha paciência, senhor Florindo.
     — Ó dona Beatriz, da última vez quem lhas cortou foi a minha mulher. Ora se ela não está aqui agora, como é que eu posso saber a grossura das fatias, dona Beatriz?
     — Fininhas, senhor Florindo. O mais fino possível, que o meu marido é um exigente que o senhor nem imagina.
     — Ai imagino, imagino, dona Beatriz. Ainda aqui esteve na quarta-feira a comprar azeitonas galegas e escolheu-as uma a uma. Fez-me para aqui uma javardice de todo o tamanho...
     — Mas está a chamar javardo ao meu marido, senhor Florindo? A um oficial de diligências, uma autoridade judicial?
     — Ó senhora dona Beatriz, isto é uma maneira de falar, que diabo! Ia lá gora chamar javardo ao marido da senhora, só por causa da sebentice que ele fez para aqui com as azeitonas?
     — Não contente com o javardo, agora chama-lhe sebento! É preciso ter descaramento! Sebento, a um marido exemplar, um pai extremoso, como ele! Até já estou a ficar incomodada, senhor Florindo.
     — Dona Beatriz, a senhora desculpe-me, mas não quis incomodá-la nem ofendê-la. O que a senhora entendeu não foi aquilo que eu quis dizer. As palavras escapam-se-me, o que é que eu hei-de fazer! Aquilo que eu quis dizer é que a minha loja ficou uma autêntica esterqueira, uma verdadeira lixeirada, depois do seu marido ter escolhido as azeitonas na quarta-feira passada. Perderam-se mais de duas horas só a lavar o chão, de tão imundo que estava, por causa da porcaria das azeitonas.
     — Ah, ainda por cima confessa que aquilo que nos vende é uma porcaria! Ao que chega o desplante, senhor Florindo. Francamente! Olhe, sabe o que mais? Já nem quero o fiambre para nada. Passe bem, senhor Florindo.
     — E a ração para as galinhas, não leva?
     — Ah isso levo, que o meu marido não pode ficar sem pequeno-almoço, coitado!

publicado por jdc às 21:19
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Quarta-feira, 26 de Setembro de 2007

O Suaíli

    

     Hoje levantei-me cedíssimo. Era noite ainda.
     Adormeci tarde, excitado, sonhei com as Guerras Púnicas e as Invasões Napoleónicas – tudo a cores e à mistura - e acordei de um pulo, com as notícias das seis e meia no rádio.
     E tudo isso deve ter acontecido, presumo eu, por ter sido hoje a minha primeira aula de Suaíli: das 8 às 10 da manhã.
     Mas o que é que o Suaíli tem de tão especial assim para me provocar esta excitação toda, me levar a fazer a barba, apressado, de uma só passagem, a tomar um duche de água fria que quase me deixou à beira da mais aflitiva crise de hipotermia, de engolir – autenticamente – uma taça de corn-flakes com leite e zarpar, na bolina, para Letras, a fim de começar a aprender uma língua que, pese embora a circunstância de ser falada por 30 milhões de pessoas, quase ninguém sabe da sua existência ou está a par da sua utilidade, para além, claro está, da de servir para essas tais 30 milhões de almas não passarem o tempo, pasmadas, a olharem umas para as outros, sem terem o que dizer?
     Para falar francamente, não faço a mínima ideia.
     Como disse, hoje foi o meu primeiro dia de Suaíli, e nem por antecipação eu consigo justificar, de forma consequente, toda a excitação que me varreu dos pés à cabeça.
     Tanto mais que não sei o que se faz com o Suaíli; não sei o que se pretende quando se estuda Suaíli, nem sequer sei o que fazer com o Suaíli que vou aprender, se é que alguma vez o vou saber falar ou escrever.
     Mas falar Suaíli com quem? Escrever o quê ou a quem, para quê ou para quem?
     E foi com estas e outras questões de  razoabilidade semelhante a martelarem-me o juízo, que saí da sala de aula e entrei, três portas ao lado, na casa de banho dos homens. Sem dúvida o melhor sítio para se ponderar se se deve ou não aprender uma língua que ninguém sabe exactamente para o que nos vai servir. Se é que nos vai servir alguma vez para alguma coisa, nem que seja para dizer apenas obrigado.
publicado por jdc às 16:57
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Terça-feira, 25 de Setembro de 2007

Assim Não Quero Ser!

    

     Sem qualquer comentário, apesar da forte contenção para não deixar de o fazer, transcrevo aqui uma declaração publicada no número do passado dia 19 do «Notícias da Barca», na sua página 13.

     Declaração

     Eu, Armando Gonçalves de Sousa, Presidente da Assembleia de Grovelas, peço a minha demissão ao Sr. Presidente da Junta da Freguesia de Grovelas no dia 31 de Agosto de 2007, pelos seguintes motivos:
     - Para o Sr. Presidente, eu e a minha esposa não tínhamos direito a passeio enquanto que o Sr. José e a D. Maria e o Sr. António e D. Ana tiveram;
     - O Sr. Presidente da Junta queria, ainda, mandar em mim, disse ao Carlos para ele me obrigar a limpar o cemitério.
     Por isso não quero mais pertencer à Junta de freguesia.

     Ponte da Barca, 22 de Agosto de 2007.

     Armando Gonçalves de Sousa
publicado por jdc às 09:39
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Domingo, 23 de Setembro de 2007

A Poesia do Silêncio

    

     O seu nome será sempre associado à mímica, da mesma forma que o imaginário das pessoas há muito liga, de forma subliminar, a palavra «kodak» à máquina fotográfica, «levis» às calças de ganga ou «bic» à esferográfica.
     Marcel Marceau há mais de cinquenta anos que passou a ser o padrão, a referência, numa arte em que foi indiscutivelmente o maior.
     Marcel Marceau, que abriu a mímica ao mundo, que lhe deu sentido estético, que trouxe poesia ao seu silêncio, morreu ontem em Paris, aos 84 anos de idade. E com ele Bip, a personagem por ele criada, que personifica a máscara da tristeza e em simultâneo da alegria que a natureza humana sempre carregou consigo.
publicado por jdc às 20:28
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Sábado, 22 de Setembro de 2007

El Tigre

       

 

No início da década de 30, disse Federico Garcia Lorca de Pablo Neruda, quando este exercia o cargo de cônsul do seu país em Espanha: «Um poeta mais próximo da morte que da filosofia; mais próximo da dor que da inteligência; mais próximo do sangue que da tinta».
Em 1971, na altura em que recebeu o Nobel da Literatura, Neruda disse de si próprio: «Provenho de uma província perdida, de um país separado de todos os outros por uma geografia impiedosa. Fui o mais abandonado dos poetas e a minha poesia foi provinciana, dolorida e chuvosa. Mas tive sempre confiança no homem. Nunca perdi a esperança. Por isso talvez tenha chegado até aqui com a minha poesia, e também com a minha bandeira».
No livro «Oda a la Bella Desnuda» - por curiosidade comprado na casa de Valparaíso onde o poeta viveu – extraí o poema «El Tigre», sobre o qual Ana Garralón escreve como introdução: «El Tigre é um dos mais belos poemas de amor de Pablo Neruda. Tem uma força, sensualidade e ritmo que deixam o leitor sem alento. Assim como este breve e intenso poema, concebido em segredo debaixo do calor de uma grande paixão, a extensa obra de Neruda encontra no amor um tema privilegiado».
 
El Tigre
 
Soy el tigre.
Te acecho entre las hojas
anchas como lingotes
de mineral mojado.
 
El río blanco crece
bajo la niebla. Llegas.
 
Desnuda te sumerges.
Espero.
 
Entoces en un salto
de fuego, sangre, dientes,
de un zarpazo derribo
tu pecho, tus caderas.
 
Bebo tu sangre, rompo
tus miembros uno a uno.
 
Y me quedo velando
por años en la selva
tus huesos, tu ceniza,
inmóvil, lejos
del ódio y de la cólera,
desarmado en tu muerte,
cruzado por las lianas,
inmóvil en la lluvia,
centinela implacable
de mi amor asesino.
publicado por jdc às 20:10
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Sexta-feira, 21 de Setembro de 2007

Kopi Luwak

    


     Não gosto de café. Daí, não ter por hábito bebê-lo. É demasiado amargo para o meu gosto, é excitante demais para minha massa encefálica.
     Não comungo pois do hábito nacional das trinta pausas diárias para bebericar uma mistela que, para além de corroer o estômago, ainda nos esvazia cada vez mais os bolsos. Os nossos e os dos pobres agricultores que o produzem, enchendo, em contrapartida, os daqueles que o intermedeiam.
     Isso não quer dizer, contudo, que não me delicie com o seu inconfundível aroma, ou que não me despertem curiosidade as notícias que ele origina ou que à volta dele circulam. Como a que se segue:
     Em Java, Sumatra e Sulawesi que, como se sabe, são ilhas que integram a Indonésia, existe um felino de pequenas dimensões – o luwak - que se alimenta das bagas do café. Com um aparelho digestivo incapaz de digerir os grãos de café, mas removendo-lhe algumas das suas combinações mais amargas, ele procede à sua excreção conjuntamente com as fezes.
     Colhidos pelo homem por entre os dejectos do luwak, estes grãos são depois tratados, torrados e vendidos para os mercados internacionais, onde os apreciadores não se importam de pagar mais de mil dólares por quilo.
     O Kopi (café) Luwak é o mais exótico, o mais raro (colhem-se menos de 230 quilos por ano) e o mais caro café do mundo que, segundo o cientista responsável pela sua divulgação, o italiano Massimo Marcone, é menos ácido e amargo que os cafés comuns e tem um sabor insubstituível, assemelhando-se a uma agradável e subtil mistura de chocolate com sumo de uvas.
     É bem capaz de ser verdade…

publicado por jdc às 19:25
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Diálogos à solta (4)

    

 

     Vila Moura, sábado de calor. Praia apinhada. Onze e trinta da manhã. Ela, debaixo do guarda-sol, põe creme protector. Ele, bronzeado, musculoso, aproxima-se decidido.
     — Sozinha?
     — Não! Acompanhada! Com o meu marido!
     — Onde?!… Não o vejo!
     — Foi ao carro buscar os óculos de sol.
     — É pena!
     — O quê? O meu marido ter ido ao carro, ou eu não estar só?
     — Não estar só!
     — Mas porquê?
     — Experimente imaginar.
     — Não consigo!
     — Imaginar-se sozinha?!
     — Não é isso! Imaginar o que é que aconteceria se estivesse sozinha…
     — Fácil! Conversávamos, por exemplo.
     — Não é o que estamos a fazer?
     — Mas era diferente.
     — Diferente como?
     — Se estivesse sozinha, poderíamos conversar sobre outras coisas.
     — Sobre o tempo?
     — Claro que não!
     — Então?
     — Sobre nós os dois, por exemplo!
     — Mas nem sequer o conheço!
     — Não estaria já na altura?
     — De quê?
     — De me conhecer!
     — E não seria ir depressa demais?
     — Amanhã é capaz de ser tarde…
     — Então porquê?
     — Caso-me amanhã!
     — Pois é, mas hoje também é cedo, muito cedo!
     — Revanchismo?
     — Não! Nada disso! Casei-me ontem!

publicado por jdc às 09:20
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Quinta-feira, 20 de Setembro de 2007

É agora, Zé!

    

     Caro Zé,


     Foi providencial o acto do teu patrão em despedir-te. E se digo que foi providencial é porque, prontos, foi definitivo e não valerá a pena falar mais disso, mas por outro lado porque veio mesmo a calhar para te  renovar o convite que te fiz pouco depois de saíres do Benfica e que gentilmente declinaste.
     Pois é, Zé!… Preciso que venhas treinar o meu Atlético de Valdevez, que apesar de estar em primeiro lugar da segunda B, gostaria de ver a disputar - e a ganhar, claro - a «Champions League», que como o teu inglês deve deixar perceber, é a designação actual para a antiga Taça dos Clubes Campeões Europeus.
     Prometo que te darei carta branca para contratar quem tu quiseres e que nunca, sob argumento nenhum, interferirei no teu trabalho, como esse palerma do Abramovitch costumava fazer contigo.
     Amanhã, logo a seguir ao almoço, dou-te um telefonema para acertamos os pormenores, pois espero que desta vez não me faças a desfeita de recusares.

     Um abraço do teu amigo
     Zé.

     PS. – Quanto aos teus honorários, depois vê-se, pois acredito na tua capacidade para reconhecer que entre amigos como nós não existem pruridos desses.
publicado por jdc às 15:06
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O Que é o TENORI-ON

    

     Da cooperação entre o artista japonês Toshio Iwai e a Yamaha, resultou um inovador instrumento musical digital, que poderá vir a revolucionar a forma tradicional de fazer música, a que se deu o nome de TENORI-ON.
     Este sequenciador musical é constituído, basicamente, por uma matriz de 16x16 interruptores luminosos, que, premindo-se, permitem a qualquer pessoa tocar música de uma forma intuitiva.
     Já está à venda em Inglaterra desde o dia 7 pela bonita soma de 599 libras.
     O vídeo de demonstração exemplifica o seu funcionamento.

    
publicado por jdc às 09:59
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A Ida a Fátima

    

     — Mas quem é que vai a Fátima? — perguntou o meu avô, que entretanto descera do quarto, para mais uma das suas habituais incursões pela cozinha à procura de torresmos que a minha mãe, sob a ameaça de ser deserdada, era obrigada a fazer todos os dias.
     — Aí a sua querida filha é que falou nisso!… — respondeu o meu pai, apontando com o nariz, ao mesmo tempo que encolhia os ombros, um gesto que, se ainda dúvidas restassem, o desligava em definitivo daquela promessa sem pés nem cabeça que a minha mãe acabara de fazer e cuja justificação fazia assentar em pressupostos completamente infundados. O que era grave.
     Mas eu explico para que se perceba:
     A conselho do doutor Duarte, o nosso médico nos Arcos, o meu pai levou-me a Coimbra para que o doutor Piteira, um especialista de primeira água, tentasse determinar as causas da minha excitação permanente. Só que, quando nos preparávamos para entrar no consultório, soubemos que o doutor Piteira, coitado, se tinha apagado dois dias antes com uma cirrose no fígado.
     Para que não perdêssemos a viagem, por indicação do senhor Fragoso, o porteiro do prédio do falecido, acabei por ser visto pela doutora Leonilde, uma sujeita descomunalmente gorda, a quem o meu pai, numa análise controversa é certo, mas de tal forma vanguardista que me deixou perfeitamente abananado, atribuía a sua obesidade aos gases provocados pela concentração excessiva de ácido clorídrico no estômago, gerado, por seu turno, pelas muitas leguminosas que, possivelmente por via das dietas, a senhora devia andar a ingerir.
     Ora como a médica não me receitou porcaria nenhuma, limitando-se a recomendar que não me dessem café, chá ou chocolates, ou outras coisas do género que me pudessem excitar, a minha mãe, num daqueles raciocínios lineares mas indiscutivelmente perspicazes em que era perita, partiu do lógico princípio de que, se o meu pai e eu fizéramos tão longa como dispendiosa viagem a Coimbra e se não me tinham receitado nada, nem sequer aquela história horrorosa do óleo de fígado de bacalhau, era sinal evidente que a coisa era séria e o mal de morte, devendo eu estar mesmo prestes a entregar a alma ao Criador.
     Só restaria, portanto, a uma mãe extremosa e devota convicta como ela — devota, pelo menos até ter cortado relações com o padre Antero, o chupista, como me lembro dela lhe ter chamado —, apegar-se com um santo para tentar reverter a situação. Deixem-me que pergunte agora: haveria por aquela altura, em que a televisão nem sequer tinha chegado, o transistor sido inventado, o consumo da manteiga democratizado, a guerra colonial começado, investimento mais seguro em matéria de milagres que a Nossa Senhora de Fátima?
     — E vais como? — perguntou o meu avô, como que adivinhando o que estaria ainda para vir.
     — Eu estava a pensar ir a pé…
     — A pé?!… — indignou-se ele, deixando vir ao de cima todo o seu pragmatismo, qualidade que, por tão rara, lhe valia o reconhecimento e a admiração de toda a vizinhança. — Mas queres ir a pé quando o carro de aluguer é a maneira mais rápida e segura de chegar a todo o lado?
     — Mas era só de Leiria a Fátima, pai, por causa do miúdo. — achou por bem justificar-se a minha mãe.
     — Ai o miúdo também vai ?! — espantou-se o meu avô.
     — Também, que a promessa é por causa dele — respondeu ela. — Mas vai de triciclo, que é para não se cansar.
     Não sei se alguma vez contei aqui que o meu avô tinha sido marinheiro, daqueles a sério, de água salgada. Se não contei, também de certeza absoluta que não lhes disse que o navio onde ele andava foi a pique, nos mares dos Açores, durante a Primeira Guerra Mundial, perfeitamente em frangalhos, torpedeado por um submarino alemão.
     E o facto de, antes de ir ao fundo, segundo aquilo que o meu pai me contou, ter ainda conseguido — e não me perguntem como, pois essas coisas costumam ser sempre segredo militar — dar umas valentes lambadas nos gajos do submarino, valeu-lhe, para além da cruz de guerra e umas duas outras medalhas, o respeito e a admiração de toda a gente da Valeta.
     E eram todos esses factos, aliados à parafernália de atributos que, aos poucos, vinha descobrindo no meu avô, que fazia com que vivesse fascinado pela sua figura. Colocava-o, inclusivamente, no mesmo pedestal que todos os meus outros heróis favoritos, como o Super-Homem, o Mandrake, o Roy Rogers, o Príncipe Valente, o Mascarilha, ou até mesmo o Zé Sopapo.
      E é lembrando-me disso, que com muita mágoa refiro que sempre achei uma perfeita injustiça, uma clamorosa indelicadeza, uma refinada arbitrariedade, ainda ninguém se ter lembrado de fazer um livro em quadradinhos com ele a dar tareia nos boches, ou no próprio polícia Amorim que até esse, de vez em quando, também levava.
     —A propósito… — observou o meu avô, com a tampa da terrina dos torresmos suspensa no ar, como se lhe tivesse aflorado qualquer coisa repentinamente à ideia — já sabem quem é que vai financiar essa tal promessa a Fátima?
     Vi a minha mãe, de pé, a olhar comprometida para o meu pai. Percebi claramente o seu encolher os ombros, o meter das mãos impotentes nos bolsos do avental, deixando que o silêncio respondesse por ela.
     — Deixem-me adivinhar… — ironizou ele, pegando numa mão cheia de torresmos que encaminhou entretanto para a boca — aqui o marinheiro, não é verdade?
     — Ó pai, ninguém disse isso!…
     — Como se fosse «freciso»! — e os perdigotos dos torresmos, devido ao crescente agastamento, voavam-lhe disparados pela boca fora.
     E o meu avô olhando-nos aos três com uma expressão desorbitada, pegou na terrina e saiu célere a resmungar impropérios em direcção ao quintal.
     — Posso começar a aprender a andar de triciclo lá fora? — perguntei eu, na melhor das boas-fés, a ver se amenizava o ambiente.
     A minha mãe, ainda não refeita da má disposição que a argumentação do meu avô lhe provocara, deitou-me um olhar fulminante. O meu pai, contemporizador, inclinou-se para mim na cadeira e esfregou-me com a mão a cabeça.
     Ia eu, repimpado, a sair a porta quando vi o meu avô retroceder. Passou por mim como se não me tivesse visto, deu, sem querer, uma cacetada ligeira com a terrina no umbral da porta, e disse, virado para a minha mãe:
     — E se fôssemos todos de carro pôr uma vela à Senhora do Sameiro, a Braga, que é mais perto? Assim como assim — acrescentou ele — como quem paga sou eu…
     Ainda vi a minha mãe a abrir a boca, a tentar contra-argumentar, mas sem conseguir articular palavra, tornou a fechá-la.
     — Parece-me bem! — exclamou o meu pai, abanando com a cabeça. — Muito bem mesmo!
     — E já não preciso ir de triciclo? — indaguei eu.
      — E tu sabes lá andar de triciclo, rapaz? — perguntou o meu avô, baixando-se à minha altura, afagando-me o cabelo e piscando-me o olho, sorridente.
publicado por jdc às 09:47
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