foto de Anna Behm/escultura de Fernando Botero
A minha recente e breve incursão pelas Antilhas francesas, de que Marie-Galante e o restante arquipélago de Guadeloupe fazem parte, serviu-me também, como sempre tanto me entusiasma fazer, para ir revisitando ou mesmo descobrindo a História. Na circunstância, desta terra de Arauaques, gente índia, aguerrida, que povoou todo o norte da América do Sul e muitas das ilhas deste imenso Mar das Caraíbas e que soçobrou às mãos da saga desbravadora e à força de devastadoras armas dos conquistadores europeus. Tanto de espanhóis como de franceses, ingleses ou holandeses.
Depois de ter chegado bem cedo a Grand-Bourg e alugado um automóvel – se é que aquilo algum dia tivera merecido tal nome –, não perdi tempo a meter-me a caminho de Saint-Louis, dado que o último ferry para Guadeloupe, onde me tinha baseado, partia às quatro e um quarto da tarde.
Avistei-a de repente, logo quando fazia a primeira curva à saída da cidade. Um corpo descomunal, paquidérmico mesmo, quase no meio da estrada, com o indicador da mão direita estendido, em repetidos movimentos de cima para baixo, parecendo querer livrar-se da cinza de cigarro inexistente, e que, se eu ousasse, me impediria claramente de progredir a marcha do carro.
A minha primeira impressão sugeriu-me aquelas meninas de pé-de-estrada, bem nutridas e com um exuberante pneu espartilhado a custo por debaixo de vestidos de algodão sempre colados ao corpo e cronicamente subidos, à beira da pré-reforma que, a troco de uma compensação discutida muita das vezes ao cêntimo, costumam fazer uns favores a camionistas com os olhos sempre flamejantes de testosterona e a palavra sexo a tatuar-lhes a testa de lés-a-lés.
Algo me avisou, entretanto – talvez o meu subconsciente, mais traquejado em lucubrações filosóficas sobre questões de tamanha delicadeza –, que aqui não deveria haver disso, apesar da enorme bolsa em pele de vaca que trazia à tiracolo poder indicar precisamente o oposto.
Ao mesmo tempo que desviei repentinamente o volante para o lado esquerdo, a fim de não ser abalroado por aquela mancha a que os raios de sol matinais emprestavam um ar de multifacetadas tonalidades, consegui manobrar os travões de tal forma que parei precisamente a seu lado.
– Besançonne-Louise, anchantêe! – Avançou ela de pronto, acabada de se instalar com descarado alarido no carro, rasgando um sorriso de orelha a orelha, e atravessando o seu braço direito na minha direcção, mesmo por cima daqueles fartos seios que se encavalitavam já em cima do tabliê, quase se comprimindo contra o pára-brisas, para que assim pudesse, não sem alguma teatralidade, entregar-me a sua mão gorda e papuda, para um passou-bem de inesperada cortesia.
– Sanluí, silvuplé! – Disse-me ela sem me dar espaço sequer para abrir a boca.
É claro que senti uma enorme dificuldade em explicar-lhe, em francês, a uma crioula que apesar da descomunalidade do seu corpo, seguramente dando três do meu, mas que começava a reparar até que tinha uma cara simpática, bonita mesmo, de pele em tom chocolate acetinado, de que não era taxista e de que o meu carro, apesar de alugado e de eu ser claramente adepto dos desígnios da Revolução Francesa, não estava ao serviço da comunidade.
Depois de toda a minha atrapalhada argumentação, deu uma estridente gargalhada que fez estremecer de forma assustadora todo aquele seu arcaboiço – mais o carro –, olhou-me com uns olhos doces de amêndoa, presenteando-me com uma enorme palmada no ombro que eu, denotando habitualmente algumas dificuldades na retroversão de linguagem gestual, não consegui deixar de perceber como um inequívoco «vamos lá para Saint-Louis e deixa-te de merdas!».
E arranquei. No fim de contas, conclui eu resignado, para quê armar-me em difícil se ia para Saint-Louis mesmo?
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