O meu merceeiro, Florindo Estrompa, é um paz-de-alma. Alentejano dos lados de Serpa, costuma dizer que palavras levas o vento. Quer ele dizer com isto, que o que conta são os sentimentos das pessoas, é aquilo que lhes vai na alma.
Expansivo, de verbo fácil, nem sempre contudo o resultado das suas inocentes palavras é entendido da forma mais conveniente, como demonstra, aliás, o diálogo que ainda há bem pouco testemunhei no seu estabelecimento, a dois passos de minha casa. Querem ver?
— Então dona Beatriz, sempre quer os duzentos e cinquenta gramas de fiambre?
— Sim, mas não quero as fatias tão grossas como as que me cortou da última vez, tenha paciência, senhor Florindo.
— Ó dona Beatriz, da última vez quem lhas cortou foi a minha mulher. Ora se ela não está aqui agora, como é que eu posso saber a grossura das fatias, dona Beatriz?
— Fininhas, senhor Florindo. O mais fino possível, que o meu marido é um exigente que o senhor nem imagina.
— Ai imagino, imagino, dona Beatriz. Ainda aqui esteve na quarta-feira a comprar azeitonas galegas e escolheu-as uma a uma. Fez-me para aqui uma javardice de todo o tamanho...
— Mas está a chamar javardo ao meu marido, senhor Florindo? A um oficial de diligências, uma autoridade judicial?
— Ó senhora dona Beatriz, isto é uma maneira de falar, que diabo! Ia lá gora chamar javardo ao marido da senhora, só por causa da sebentice que ele fez para aqui com as azeitonas?
— Não contente com o javardo, agora chama-lhe sebento! É preciso ter descaramento! Sebento, a um marido exemplar, um pai extremoso, como ele! Até já estou a ficar incomodada, senhor Florindo.
— Dona Beatriz, a senhora desculpe-me, mas não quis incomodá-la nem ofendê-la. O que a senhora entendeu não foi aquilo que eu quis dizer. As palavras escapam-se-me, o que é que eu hei-de fazer! Aquilo que eu quis dizer é que a minha loja ficou uma autêntica esterqueira, uma verdadeira lixeirada, depois do seu marido ter escolhido as azeitonas na quarta-feira passada. Perderam-se mais de duas horas só a lavar o chão, de tão imundo que estava, por causa da porcaria das azeitonas.
— Ah, ainda por cima confessa que aquilo que nos vende é uma porcaria! Ao que chega o desplante, senhor Florindo. Francamente! Olhe, sabe o que mais? Já nem quero o fiambre para nada. Passe bem, senhor Florindo.
— E a ração para as galinhas, não leva?
— Ah isso levo, que o meu marido não pode ficar sem pequeno-almoço, coitado!
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