caricatura de Court Jones

— Vinha buscar uns óculos que deixei aqui há dois dias para arranjar.
— E em que nome é que ficaram?
— São do meu marido.
— Sim, mas qual é o nome?
— O meu? Marília Alves Carneiro.
— Não, minha senhora! O nome do seu marido!
— E para que é que a senhora quer saber o nome do meu marido?
— Para poder entregar os óculos à senhora.
— Ora essa! Então agora uma pessoa para poder levantar uns óculos tem de dizer o nome do marido? E se for divorciada? Ou mesmo viúva?...
— Não é isso, minha senhora...
— ...Sim, porque eu, que já sou casada há vinte e nove anos, e sempre fiz questão disso, casei-me com separação de bens, só para que não dissessem que lá por o meu marido ser engenheiro da construção civil, estava a dar o golpe do baú, como se diz agora nas telenovelas brasileiras e nas da TVI, que a RTP anda uma autêntica porcaria, só com debates, só com debates. O meu mais velho, o Jorge Humberto, que está agora a tirar o mestrado em psicologia clínica até comentou isso com a mais nova, a Alcina Maria, antes dela se ir embora para as Canárias fazer o trabalho de fim de curso em antropologia, que ela até queria, tadinha, ir para São Tomé e Príncipe, mas eu desaconselhei-a e até lhe disse-lhe: Ai filha, olha as picadelas dos mosquitos, olha a febre hemorrágica, o dengue, a malária, as bexigas doidas, olha os pretos de lá que são tão escuros, e ela lá se convenceu e foi para as Canárias que sempre é mais perto, apesar de serem todos espanhóis, o que também é um grande aborrecimento como deve imaginar...
— Minha senhora, como certamente já reparou, está aqui uma imensidão de pessoas para ser atendida. Então, recapitulemos se faz favor, para ver se nos despachamos: A senhora entregou cá um par de óculos para consertar, certo?
— É isso mesmo!
— E deixou-os ficar em nome de...
— Do meu marido!
— Ainda bem que a senhora se lembra. E o seu marido chama-se?...
— Mau, a senhora insiste! Para que é que quer saber o nome do meu marido? Só se for para lhe telefonar! Tenho visto tanta coisa, que até já nem estranho nada. Sim, porque ele, apesar de ter já cinquenta e dois anos e não parecer, é uma estampa que nem lhe digo...
— Eu imagino...
— Olhe, então para nos despacharmos, que eu também estou com pressa, são uns óculos de ver ao perto, com aros fininhos de metal preto, como usa agora aquele actor americano... ai ajude-me lá, como é que se chama o sujeito?... que fazia de médico das urgências naquela série americana e até dá uns ares com o António Banderas, que eu até no outro dia, quando estávamos a ver televisão, comentei com o meu marido, na brincadeira: Ai Manuel Flórido, se não fosse casada contigo e se o Banderas não fosse espanhol, até fazia uma asnei...
— Desculpe-me, disse Flórido?
— Exactamente. É um nome muito bonito, não é? Pois é... eu também acho, e até para lhe ser franca...
— Não precisa de dizer mais nada, minha senhora, não se canse. Estão aqui os óculos do seu marido.
— Está a ver, como eu até tinha razão!... Como vê, não precisou de saber o nome dele para me entregar os óculos. Se não fossem as burocracias, este país até que andava para a frente. Se as pessoas se deixassem de palavreado e trabalhassem, mas não, ainda anteontem, estava eu a conversar com a minha vizinha do terceiro esquerdo, a dona Francelina, a falarmos da vida, não é verdade... ... ...