Casados há oito anos, Maria Luísa e António José, tinham um filho, o Bruno Miguel — esperto o puto — que claramente evidenciava qualidades incomuns para a tão tenra idade dos seis. Havia quem dissesse ser um sobredotado.
— Paiê!... — chamava o Bruno Miguel, sentado à mesa, durante o jantar, ao mesmo tempo que se assistia ao Jornal Nacional da TVI.
— Sim filho?! — dizia o pai, enquanto serrava o hamburguer e olhava de canto para a televisão.
— Quero ser otolinolalingologista!
— Queres o quê, filho?
— Ser otolinolalingologista! — e ria-se, o puto.
— Mas que nome tão feio, Bruno Miguel! Nem penses nisso! — dizia a mãe, enfiando-lhe na boca uma monumental garfada de um misto de arroz espapaçado, gema de ovo estrelado e de um pedaço de douradinho do capitão Iglo. — Vá lá, come e cala-te, que é para a comida não arrefecer.
— Mache puquê? — perguntava o miúdo, de boca cheia. — puqué que num pocho chê otolinolalingoloxista?
— Claro que podes, filho! — respondia o pai, mais interessado em ver a notícia sobre o homem que tinha dado um tiro na mulher, esfaqueado o baço à sogra, posto veneno de ratos na comida do sobrinho mais velho e se enforcado de seguida, do que no futuro do seu próprio filho. — Hás-de ser, mas agora não, que estamos a jantar. E além disso não se fala de boca cheia, que é feio. Olha ali a senhora na televisão, com aquela boca tão grande, maior que as nossas três todas juntas, já viste?
— Mas também não é para já que eu quero ser otolinolalingologista — dizia ele insistente. — É só quando for grande!
— E hás-de ser, filho, e hás-de ser! Mas agora come!
— Mas como porquê?! — perguntava o puto, perto da indignação. — Na televisão é que têm razão quando dizem que não há diálogo entre os pais e os filhos...
— Claro que há diálogo, filho. Então não há diálogo?!— respondia o pai, olhando surpreendido para a mãe, por tão esquisita questão levantada a hora tão imprópria e, ainda por cima, por um filho que os educadores lá da creche teimavam em afirmar ser sobredotado. Quando se via perfeitamente que era um miúdo normal. Chato como todas as crianças.
— Então como é que há diálogo? — insistia o Bruno Miguel. — Quando eu falo, enchem-me a boca de comida. Se eu falo, mandam-me logo calar e dizem-me que não se fala com a boca cheia, que é feio!...
— Maria Luísa...
— Diz amor...
— Estou farto de te dizer para não deixares o Bruno Miguel ver os programas da 2. Anda intelectual de mais para o meu gosto, este miúdo!