Terça-feira, 7 de Agosto de 2007

O Rato equilibrista

 

   Lembro-me tão clara e distintamente como se fosse hoje: fazíamos um magote quase compacto, os seis ou sete do costume, ajoelhados junto aos três degraus do altar, compenetrados a rezar, naquela missa das dez. Por altura do sanctus, ou das campainhas, como nós dizíamos, o Zé Ramalho deu-me uma cotovelada, fazendo-me um sinal com a cabeça para olhar em direcção à parte inferior do altar. Vi, espantado, junto do rodapé dourado, mesmo por detrás dos calcanhares do padre Antero, um rato pouco maior que uma mão-travessa, a passear-se com despudorada tranquilidade. 
   O Jorginho Malaguetas, que estava do meu lado esquerdo, apercebendo-se da situação, sussurrou qualquer coisa para o Berto Zeferino que, encolhendo a cabeça entre os ombros, tapou a boca com a mão e deu daquelas gargalhadas silenciosas, que a circunstância exigia e coisa em que ele era mestre. Entretanto, o rato, talvez assustado pelo ruído das campainhas, e isso eu vi perfeitamente, correu sobressaltado e célere para uma estreitíssima nesga que havia na ponta do altar, enfiando-se no buraco.
  — O rato fica por minha conta! — Disse o Zé Ramalho, depois de acabada a missa, quando nos sentámos no paredão do jardim.
   — E para que é que queres a porcaria do animal? — Perguntou o Mário Fanfas.
   — Estão a ver aqui a minha bota? — E enquanto perguntava isto, o Zé Ramalho premia a ponta da sola contra a terra batida e girava-a para um lado e para o outro, como quem esmaga uma ponta de cigarro. — Esborrifo-o de tal maneira que nunca mais se lembra do dia em que nasceu.
   — É que nem penses nisso! Tadinho do inocente! — Exclamava o Berto Zeferino. — Eu adopto-o.
   — Podíamos encher o buraco do altar de fumo, como se faz às abelhas, mas do tóxico, tipo concentrado de ácido sulfídrico, e ele bumba, apaga-se completamente — sugeria o Jorginho Malaguetas que era o perito do nosso grupo em torturas, golpes de mão, especialidades dissuasórias e manobras de diversão.
   — E tu queres adoptá-lo para quê? — Perguntei eu ao Zeferino, com uma certa dose de curiosidade.
   — Ensinava-o a fazer habilidades.
   — Eu dou-lhes as habilidades — ameaçava o Zé Ramalho tornando a espremer a bota contra o chão, gingando-a. — Assim, ó!...
   O Berto Zeferino exclamou, com inesperada firmeza, que nem pensasse nisso. Disse que lera uma vez num livro que os ratos podiam ser ensinados a vir comer à mão, a andar só em duas patas e a empurrar carrinhos de linhas, por exemplo. E que até conseguiam andar no trapézio, como os equilibristas do circo.
   — Então se tu consegues ensinar o gajo — concluía o Mário Fanfas —, podemos mostrar essas acrobacias às pessoas e cobrar bilhetes.
   — Até que nem era má ideia...  — acrescentou o Lamparina Apagada.
   — E já agora, para completar o espectáculo, púnhamos também um número com pulgas amestradas, daquelas que ninguém vê, não?! — Acrescentava o Zé Ramalho, verdadeiramente decepcionado, por ver fugir-se-lhe a oportunidade de fazer o gosto ao pé.
   — Eu estou com o Zé Ramalho — esclarecia o Malaguetas —: esborrifa-se o desgraçado!
   É evidente que perante tão declarado conflito de interesses, tivemos que colocar a vida do rato pendente do resultado de uma pouco ortodoxa votação de braço no ar. Venceu a avidez do dinheiro, o «show business». Venceram aqueles que, talvez por ignorância — comigo incluído — eram pela exploração ignominiosa e abjecta das habilidades do pobre infeliz, a troco de umas hipotéticas migalhas para gelados e caramelos. Os outros mais radicais, o Zé Ramalho e o Jorginho Malaguetas, os únicos favoráveis a uma solução holocaustiana para o desditoso roedor, apesar de vencidos e num gesto apreciado por toda a gente, manifestaram a sua vontade de se submeter aos desejos da maioria, não pondo assim em causa a decisão do colectivo.
   — Então há que ir buscá-lo! — Exclamou o Berto Zeferino, com aquele seu sorriso aberto que se lia nos seus olhos piscos, por detrás das lentes de vidro de fundo de garrafa.
E assim fizemos. Estávamos nós todos, de cócoras, a acenar com um bocado de trigo para o buraco e chamando «bexiguim, bexiguim, bexiguim» — não sei quem se lembrou disto, mas de certeza que este tipo de chamamentos nunca deve ter resultado com ratos —, quando se aproximou por detrás de nós o tio Antone sacristão.
   — É disto que vocês andam à procura? — Perguntou ele, mostrando-nos, sorridente, e dependurado com o rabo preso entre o polegar e o indicador da sua mão direita, o rato imobilizado, definitiva e irremediavelmente já cadáver. 
   — Então você foi matar o bichinho, tio Antone? — Questionou, estupefacto primeiro, verde de comoção depois, o Berto Zeferino.
   — Eu não! Foi o veneno que o senhor abade pôs para aí em todo o lado.
   — Isso não se faz! É indecente! Matar assim o pobre animal!... — Recriminava o Zé Ramalho, esquecendo-se que a solução que apontara anteriormente para o extermínio do rato era muito mais sanguinolenta e angustiante.
   Claro que diante deste panorama, a desilusão abateu-se inexoravelmente em cima de todas as nossas cabeças. Lá se foram, portanto, os nossos sonhos de amestradores de ratos e, por consequência, de virmos a auferir os correspondentes resultados financeiros da nossa futura incursão pelos sempre profícuos terrenos empresariais do mundo do espectáculo.
   E vínhamos nós quase a passar a porta da sacristia, acabrunhados, interiorizando a nossa desdita, quando o Berto Zeferino estacou e fez um «shhhht!» a recomendar-nos silêncio. Ouviu-se, ouvimos todos nós então, distintamente, entre a quietude daquelas sagradas paredes, o chiar de um rato. Olhámos para o rodapé do altar e lá estava ele, o sacana, a desafiar-nos, com o nariz empinado e a mexer, para um lado e para o outro, o seu longuíssimo rabo.
   Pelos vistos, o rato que o tio Antone nos mostrara era irmão, pai, ou afilhado, não importa, do nosso Policarpo, como o Jorginho Malaguetas lhe chamou de imediato, atirando-lhe cuidadosamente com uma bucha de pão. O que é certo é que comeu tudo e, quando o Berto Zeferino o chamou com um «bexiguim, bexiguim, bexiguim», o safado veio, todo lampeiro, comer-lhe à mão.
   Estava, assim, dado o primeiro passo dum longo mas promissor percurso da carreira artística do Policarpo e do nosso frutuoso negócio. O mais difícil ainda estaria, contudo, para vir: como conseguir autorização do secretário da Câmara para realizar os espectáculos. Até pôr o rato a fazer triplo salto mortal e de costas, era, de certeza, muito mais fácil.

 

publicado por jdc às 00:25
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