Terça-feira, 7 de Agosto de 2007

Marie-Galante

  

 

   Pouco importa para início de narrativa que naquele domingo, 3 de Novembro de 1493, tenha chovido ou não. Mas o grau de probabilidade para que isso tivesse acontecido é todavia grande, pois por aquelas paragens, apesar do calor que sufoca e da humidade que nos dá cabo da alma, é raro o dia do ano em que as nuvens que enxameiam as montanhas, sopradas por inesperados ventos marinhos, não se esvaiam pelas planícies afora em tormentosa aguada.

   Não estou certo também – porque disso não vi qualquer referência na documentação que consultei – que tenha sido rezada missa em louvor do cometimento, ou qualquer cerimónia pagã para glorificar a ocorrência. Mas o que importa, porque são esses os factos com que realmente se escreve a História, é que foi nessa data que Cristóvão Colombo, no decurso da sua segunda viagem às Índias Ocidentais, descobriu uma pequena porção de terra, uma ilha de um redondo quase perfeito, de quinze quilómetros de diâmetro, a que deu o nome da sua nau-almirante: Maria Galanda.
   Bastante anos mais tarde, em 1648, uma meia centena de franceses iniciou a colonização da ilha, reformulando-lhe desde logo o nome para Marie-Galante. Até hoje.
   E foi atrás deste nome, bonito, de alegre sonoridade, que bem cedo na manhã de quinta-feira da semana passada, me vi de repente metido num ferry e me deixei levar até lá, enleado nas teias que a minha curiosidade sempre gostou de tecer.
   «Mas já não há escravos?», perguntei eu, na minha santa inocência, acabado de desembarcar em Grand-Bourg, a capital, a um empregado crioulo duma agência de aluguer de automóveis, admirado por não ver no largo fronteiro ao porto ninguém em tronco nu, atado a um poste, e a escorrer sangue pelas costas abaixo, incontornável vestígio da cruel punição e das impiedosas vergastadas com que os capatazes das plantações de cana-de-açúcar costumavam brindar os mais madraços para os obrigarem a encarreirar.
   – Nu sóme à da mile ê sète, mêssiê! – começou ele por me advertir, num francês do tipo açoriano e com o dedo em riste bem colado ao meu nariz  –
Pur vótre anfórmàción lèsquelávàge é fini à mile uítesam carrantuíte! Èsseque jmfé comprândre?
   – Assim já há tanto tempo? – perguntei-lhe eu feito murcounhe, no meu francês que vai dando para os gastos, é certo, mas mesmo assim reconhecido por gente entendida como sendo mais parecido com o catalão ou até mesmo a arrepiar para o basco.
   – Ùí! – respondeu-me ele, telegráfico e claramente incomodado.
   Depois de umas palmadinhas nas costas e uns sorrisos meio imbecis que fui obrigado a fazer para restabelecer a confiança, lá consegui que me alugasse um carro. Os setenta e dois mil trezentos e vinte e sete quilómetros escancarados no contador, a porta do lado direito metida dentro, o pneu suplente vazio, a falta do espelho retrovisor do meu lado, o vidro de trás com orifícios de duas valentes pedradas e a pintura descascada pelo sol, indiciavam que pior o sujeito não me poderia ter arranjado. Isso não foi todavia impeditivo de eu me fazer alegremente à estrada em direcção a Saint-Louis, à procura de aventura. Que não tardou.

publicado por jdc às 17:06
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