Segunda-feira, 6 de Agosto de 2007

O Domador

 

 

   «Um dia destes ainda ficas sem cabeça, vais ver!» avisavam-no, vezes sem conta, perante as suas arrojadas proezas, os colegas de trabalho e os amigos mais chegados: o malabarista Tenório, o palhaço rico Ferdinand, o prestidigitador e afamado ilusionista Karmal, os trapezistas búlgaros Irmãos Constantinof, Rajastan o faquir engole-espadas, a fogosa trapezista Monique Didier, esposa do senhor Cardoso, o dono do circo; a menina Amélia, do guarda-roupa, a dona Constança pregadeira, o Lopes electricista, o Jagunço, que dava de comer aos bichos, o Matos da bilheteira, e até o Leopoldo Nobre Pais, o arrumador.
   Como que dando o peito às balas na mais sangrenta das batalhas, como que irrompendo afoito pelas labaredas adentro, no mais incontrolável dos incêndios, como que apostando tudo no mesmo cavalo, na mais decisiva das corridas, como que gastando o derradeiro fósforo para se safar do mais escuro dos precipícios, Laléu, o domador, enfrentava as feras com a audácia dos indómitos, o arrojo dos insubmissos e com a bravura do maior e mais aclamado dos heróis, arrancando da plateia, invariavelmente, noite após noite, os mais vibrantes aplausos, as mais calorosas ovações.
   Arrepiavam-se os espectadores, varados de medo, quando viam aqueles leões de extraordinária envergadura, de fenomenal arcaboiço, de pata erguida, garras à mostra, bem ameaçadoras, a atirarem-se nitidamente para cima do artista e este, demonstrando admirável jogo de cintura e refinado instinto de sobrevivência, enganar as bestas desviando-se para o lado exactamente contrário ou então — e isso eu constatei ser recorrente em muitos dos seus espectáculos — baixar-se subitamente, permitindo que o leão saltasse por cima dele.
    E era neste complicado jogo de cumplicidades, neste estranho xadrez de conivências — e era minha forte convicção que elas sempre tivessem existido, pois sem cumplicidades, sem conivências, sem leões mancomunados com domadores, não haveria sustento nem para um lado nem para o outro — que a encenação se ia desenrolando, para gáudio da assistência que via a adrenalina subir-lhe, do senhor Cardoso que via as receitas engrossarem-se, do João Capêlo, companheiro, paixão e empresário dedicado de Laléu, que vivia em lua-de-mel permanente com aquela bravura de homem.
   Até que uma noite, quando menos se esperava e as coisas estavam a correr tão bem, no preciso momento em que Laléu, com a mesma determinação e serenidade com que sempre o fizera, se preparava para o momento alto de todos os seus espectáculos, o seu derradeiro instante de apoteose, metendo a sua cabeça na bocarra de Zanzibar (o leão mais velho) este, sabe-se lá porque motivo, decidiu mandar às ortigas todas as suas anteriores combinações, todas as suas obrigações para com o dono do circo, para com o domador e até para com os seus colegas felinos, num gesto incompatível com as regras da mais sã convivência, decapitou de um só golpe o Laléu, arrancando-lhe a cabeça.
   A moral da história — se é que há alguma moral nesta história — é que em matéria de compromissos nada poderá ser por trinta e um de boca. Só por escrito, realmente.

 

publicado por jdc às 23:44
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