Quinta-feira, 9 de Agosto de 2007

Valores...

 

   O Arturinho não morreu. Apagou-se. Assim, puff..., suavemente. Sem pecados para confessar, mágoas para carpir ou rancores para purgar. Esgotou-se-lhe a vida, como balão que se esvazia, fósforo que chega ao fim, ou barco que se afunda em mar de tranquilidade: plácida e serenamente .
   Nunca dele veio mal ao mundo; nunca, às mãos dele, pereceu a virgindade de qualquer donzela ou de quem quer que fosse; nunca, por ele, alguém perdeu a camioneta do Salvador para Braga, do Domingos da Cunha para Balugães ou da Automotora para o Porto; nunca, o Arturinho, deixou de lavar os dentes com pasta medicinal, quatro vezes ao dia, sacramentalmente, tal como aconselhavam no rádio; nunca, aquele santo, se queixou à Guarda das uvas americanas, que todos os anos e por sistema, lhe roubavam da quinta que herdara de seus paizinhos na Guia; nunca, mas mesmo nunca, deixou de participar como fervoroso praticante da ritualidade católica, que às onze de cada domingo se celebrava na igreja da Lapa;  nunca ninguém o viu na sala de jogo clandestino do Arcuense a aventurar-se na lerpa, no king, no abafa, ou sequer no sete-e-meio.
   Não fazia ondas, o Arturinho, nem mesmo quando morreu, coitado. Que não morreu, como se sabe. Apagou-se, assim ó…puff!
   Nunca se viu beber um copo, um que fosse, na tasca do Juca, na Regional, na Tininha do Miguel ou noutra taberna qualquer; nunca cobiçou mulher do próximo porque para ele, não que mulher não fosse, mas o próximo era sagrado; nunca, pelo menos que isso tenha constado, saiu dos Arcos, nem mesmo para ir a banhos a Âncora, como fazia toda a gente naquela época com o seu estatuto e na sua posição; nunca comprou sabonetes Heno de Pravia, chocolates ou caramelos espanhóis de contrabando; nunca se lhe conheceu cor política ou participou numa eleição. Não porque não as havia, mas porque insistia, mesmo não as havendo, em ser de manifesta neutralidade.
   Não gostava de pepino, que o fazia arrotar, de ovos escalfados com ervilhas pelo seu adocicado, de favas com chouriço que lhe davam voltas ao estômago, de sável de escabeche que se perdia no meio de tanta espinha, do Antunes da farmácia e do cheiro dos seus pés, de fazer a barba em casa porque se cortava todo, ou de andar de bicicleta porque se os tivesse, com a sua falta de jeito, daria de certeza cabo dos cornos.
   Era assim uma espécie de amor-perfeito, o Arturinho, quando partiu desta vida. Que não morreu, como se disse. Apagou-se, coitado… puff!
   Todo ele era um manancial de boas maneiras: era incapaz duma maledicência ou blasfémia, de pôr a língua num selo de correio, de sair de casa em jejum, de vir regar os crisântemos do seu quintal em pijama, de cuspir para o chão, da cantarolar modas brejeiras, de urinar sem levantar o tampo da sanita, de ouvir um relato de futebol, de apalpar o rabo à leiteira como eu cheguei a fazer tantas vezes, de dirigir-se a desconhecidos que não fosse por vossa excelência. Era incapaz até, acreditem, de dar um traque, por mais de mansinho que fosse. Talvez tenha sido por isso mesmo vão ver, não que tenha morrido –  pois já se sabe que não morreu – , mas que se tenha apagado. Atulhado em gases.
   Tem acontecido aos melhores.
   Palavra!

publicado por jdc às 10:19
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