do cartaz «The Jazz Singer»
Há quem se esqueça, ou talvez, por circunstância desculpável, nunca tenha chegado a aperceber-se, que apenas há cinquenta anos atrás, a nação mais poderosa do mundo, que hoje é injustamente acusada ou, visto por outra perspectiva, orgulhosamente apresentada como sendo o exemplo acabado de democracia e pátria de todas as oportunidades, onde qualquer patarata pode livremente ascender ao cargo de seu presidente, vivia — mais especificamente os seus estados do sul — na mais abjecta das ignomínias: uma feroz discriminação racial, com a inqualificável supremacia branca sobre a raça negra o que, para além do irreparável estigma lançado sobre gerações inteiras, fazia mergulhar a vida americana no lodaçal de inquantificáveis injustiças, brutalidades e mortes.
Os finais da década de cinquenta foram particularmente violentos no que à integração racial diz respeito, com a comunidade negra ainda incipientemente organizada a clamar, cada vez com mais consciência e claramente com maior veemência, pelos seus direitos e com os brancos — não todos, é de justiça dizer-se —, em torno da sua implacável e macabra Ku Klux Klan, teimosa e sanguinariamente a remarem contra o curso natural da História.
Naquela altura a vida em sociedade regia-se por uma absurda separação racial, onde seria impensável qualquer tipo de união entre brancos e negros, qualquer manifestação de despreocupada amizade, onde até o mais insignificante cargo estadual estava vedado aos negros e os locais públicos se duplicavam para satisfazerem separadamente ambas as cores de pele.
Corre o ano de 1958 e a nossa história passa-se numa populosa cidade, algures no Estado do Alabama, bem no epicentro do conflito sobre a integração entre brancos e negros. O cenário é o do interior de um autocarro de transporte colectivo urbano, daqueles onde, de acordo com o que a lei determinava, os brancos deveriam ocupar os lugares da frente e os negros, obviamente, os de trás.
Um passageiro negro, entretanto, não conformado com a situação, naturalmente revoltado com esta intolerável divisão decidiu, certamente como resultado de calculada ponderação, ocupar um dos lugares da frente, como já se sabe reservado aos brancos. Gera-se um natural burburinho de que, subindo em crescendo, resulta uma altercação violenta envolvendo a generalidade dos ocupantes do autocarro.
O motorista, um homenzarrão, de costas e cara largas, cabelo ruivo e ar até de bom sujeito, trava de repente e, completamente fora de si, berra para a turba engalfinhada:
— Acabou-se!!! Estou farto destes conflitos raciais que não nos levam a lado nenhum!! Somos todos seres humanos, que diabo!
E os passageiros, talvez pela determinação com que o condutor do autocarro disse aquelas palavras, suspenderam de imediato as confrontações. O motorista continuou:
— Tenham paciência mas não admito mais problemas deste tipo no meu autocarro! Vamos pôr, e já, um ponto final nesta história de brancos e negros. A partir de agora passamos a ser todos verdes, que é a cor da esperança! Por isso, vamos a sentar-nos com calma, para que a viagem decorra tranquila.
E todos abanaram as cabeças, como que dando o seu assentimento à ideia.
— Ah!... — rematou, virando-se novamente para trás —, mas para que tudo se passe na mais perfeita das normalidades, os verdes mais claros sentam-se à frente e os verdes mais escuros atrás, está bem assim?
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